06/06/2017 - 13:44

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Remição pela leitura: enfim, realidade no Rio de Janeiro

06/06/2017 - 13:44

Remição pela leitura: enfim, realidade no Rio de Janeiro

Pleito de representantes da OAB/RJ no Conselho Penitenciário do Estado desde 2014, o projeto que permite reduzir a pena através da leitura começa a ser implantado no Rio de Janeiro. Programa ajuda a disponibilizar acesso à cultura e ressocialização em um cenário no qual faltam trabalho e educação, previstos em lei
 
CÁSSIA BITTAR
Após anos de tentativas de implementação da remição de pena por leitura, o programa, enfim, começa a se tornar uma realidade no Rio de Janeiro. Engatinhando, em meio à crise do estado, o projeto, adotado desde 2012 nos presídios federais e logo seguido por São Paulo, Santa Catarina, Paraná, Tocantins, Paraíba e Pará, se torna mais um braço para a ressocialização de internos do sistema penal fluminense.

O programa encontrou uma brecha para ser aplicado após a regulamentação da remição de pena por estudo – que foi incluída na Lei de Execução Penal pela Lei 12.433/11. A partir de então ficou clara a obrigação do Estado de dar assistência educacional ao preso, além de oportunidade de trabalho: a cada 12 horas de frequência na sala de aula (no ensino fundamental, médio, profissionalizante ou superior), o custodiado tem um dia a menos de pena a cumprir.

Uma discussão jurídica se instaurou sobre a determinação de “leitura” enquanto estudo, porém, com o entendimento conjunto dos ministérios da Justiça e da Educação e uma recomendação publicada pelo Conselho Nacional de Justiça (Recomendação 44 do CNJ), a remição por leitura passou a ser adotada por mais estados, individualmente.

O modelo utilizado pelo Ministério da Justiça nos presídios federais e seguido pelos estados consiste no estímulo à remição pela leitura como forma de atividade complementar, especialmente para apenados aos quais não sejam assegurados os direitos ao trabalho, à educação e à qualificação profissional.

A quantidade de projetos sobre a questão no país levou o ministro do Superior Tribunal de Justiça (STJ) Sebastião Reis Júnior a reformar uma decisão da 1ª Câmara do Tribunal de Justiça Militar de São Paulo para permitir a remição de pena de um detento por ter lido o livro A cabana. Na decisão, o ministro salienta que a redução da pena por leitura passou a ser estimulada em nível nacional a partir da Recomendação 44 do CNJ e que, atualmente, esse modelo vem sendo adotado em vários estados do Brasil.

No Rio, segundo o juiz titular da Vara de Execuções Penais (VEP), Rafael Estrela, os presos interessados no projeto têm 30 dias para a leitura de uma obra, apresentando ao final do período resenha a respeito do assunto. O texto deverá ser avaliado e ratificado por um dos integrantes da comissão responsável pelo programa de remição, formada, em geral, por magistrados. São avaliados, na resenha, o domínio da norma padrão da língua portuguesa, estética, estrutura lógica e qualidade do texto. No caso de presos que não completaram o ensino médio, a resenha pode ser substituída por um formulário.

Cada obra lida possibilita a remição de quatro dias de pena, com o limite de 12 obras por ano, ou seja, no máximo 48 dias de remição por leitura a cada 12 meses. Vale para apenados em qualquer regime.
“Estamos há dois anos tentando implementar esse projeto, pedindo autorização para a Vara de Execuções Penais, que ainda estava receosa porque havia parecer contrário do Ministério Público sobre essa questão.
 
Porém, entendemos que é um programa de validade ímpar, ainda mais no cenário de crise em que nos encontramos”, conta a coordenadora da Subsecretaria de Inserção Social da Secretaria de Estado de Administração Penitenciária (Seap), órgão responsável pela realização do projeto, Patrícia Freitas.

Regularizado em julho de 2016, pela Resolução 621 da Seap, o programa começou, de fato, a ser implementado em novembro, quando uma estrutura básica já havia sido montada para viabilizá-lo, conta Patrícia. “Começamos a procurar parcerias com escolas e universidades, além de outros órgãos, para que conseguíssemos um acervo de livros necessário para o início do projeto”, explica.

Para escolher os títulos, a subsecretaria fez uma pesquisa sobre quais eram os livros mais procurados no sistema penitenciário brasileiro, relata a coordenadora. “Chegamos a 26 títulos, mas, deles, só conseguimos 12 nas doações, e foi com eles que começamos a trabalhar”.

Desde então, cerca de 25 turmas já foram formadas nas dez unidades prisionais do estado em que o programa funciona, atingindo em torno de 250 detentos, entre homens e mulheres.

O projeto é organizado em turmas de dez internos, no máximo, sob a orientação de um responsável da área de pedagogia ou letras, oriundo da parceria com as escolas e universidades. “São organizados então três encontros: no primeiro, o professor apresenta o projeto e os internos escolhem a obra que gostariam de ler. No segundo, tiram dúvidas, debatem com o profissional a respeito do que leram. E no terceiro fazem uma resenha crítica ou preenchem um formulário”, conta Patrícia.

Com uma estrutura mais simples do que a de uma sala de aula, a iniciativa, além de promover o prazer da leitura entre os presos, pode ser, na verdade, uma das poucas oportunidades de muitos deles terem acesso a um programa social.

“Não há emprego para todos os presos. Disso todos nós sabemos. E também não há escolas. Esse programa vem em ótima hora para suprir, frente a um cenário de crise, esse buraco. É uma chance de o preso remir a sua pena, mas também uma oportunidade para ele entrar em contato com o mundo exterior através da leitura, algo essencial quando pensamos em ressocialização”, observa o advogado Lucas Noronha, um dos representantes da OAB/RJ no Conselho Penitenciário do Estado do Rio de Janeiro.

De fato, os números que indicam a falta de acesso de detentos à educação são preocupantes. Matéria publicada em fevereiro de 2016 no jornal O Dia aponta que, dos cerca de 45 mil internos no estado, só 3.351 estudavam na ocasião. Hoje, segundo a subsecretaria da Seap, o Rio de Janeiro tem cerca de 52 mil detentos, entre homens e mulheres, considerando todos os regimes. Porém, a estrutura educacional não acompanha esse crescimento.

Em um levantamento feito pelo jornal O Globo, também em 2016, junto às secretarias de administração penitenciária dos 26 estados e do Distrito Federal, foi constatado que a proporção de presos que estudam cresce em ritmo lento. Se em 2014 os estudantes nos presídios eram 11,9% de 551 mil apenados, em 2016 esse número saltou para 12,8%, num universo de 656 mil pessoas sob custódia. Um aumento de apenas 0,9 ponto percentual em dois anos. A população carcerária, no entanto, subiu 19% nesse período.
 
Projeto enfrenta dificuldades para expansão
Mesmo exigindo menos verba do que a estruturação de uma sala de aula com materiais escolares, o projeto de remição por leitura ainda enfrenta muitas dificuldades para se expandir. Segundo Patrícia Freitas, a principal delas é justamente o acervo, adquirido hoje por doações de entidades parceiras. “Temos que trabalhar com títulos restritos, pois os profissionais que orientam as turmas precisam ter lido todas as obras, a fim de encaminhar os participantes ao longo de seu processo de leitura”.

Questões de transporte e a dificuldade até mesmo para conseguir profissionais também são apontadas tanto por ela quanto pelo Conselho Penitenciário. “Hoje temos parcerias com faculdades, escolas e estamos buscando também com outros órgãos para conseguir ampliar essa base”, diz a coordenadora de Inserção Social da Seap.

Os títulos trabalhados atualmente são, em ordem alfabética: A cabana, de William P. Young; A cidade do sol, de Khaled Hosseini; A menina que roubava livros, de Markus Zusak; A revolução dos bichos, de George Orwell; Diário da queda, de Michel Laub; Dona Flor e seus dois maridos, de Jorge Amado; Maus, de Art Spiegelman; Memórias do cárcere, de Graciliano Ramos; Nunca desista dos seus sonhos, de Augusto Cury; O alienista, de Machado de Assis; O alquimista, de Paulo Coelho; O apanhador no campo de centeio, de J.D. Salinger; O caçador de pipas, Khaled Hosseini; O diário de Anne Frank, de Anne Frank; O estrangeiro, de Albert Camus; O filho eterno, de Cristóvão Tezza; O futuro da humanidade, de Augusto Cury; O menino do pijama listrado, de John Boyne; O pequeno príncipe, de Antoine de Saint-Exupéry; O processo, de Franz Kafka; O vendedor de sonhos, de Augusto Cury; Se eu fechar os olhos agora, de Edney Silvestre; e Toda poesia, de Paulo Leminski.

O diretor da divisão de Educação, Cultura e Esporte da subsecretaria, Geovani Lima, conta que os livros mais procurados são os voltados à espiritualidade, como A cabana, ou os de autoajuda, como as obras de Augusto Cury. “Tanto homens como mulheres buscam por esse cunho de espiritualização, esse contato com o divino, uma forma de conforto”, salienta.

Patrícia diz que, nas resenhas, é possível ver que muitos encontram uma inspiração para suas vidas no cárcere pela leitura: “Li uma resenha sobre o Diário da queda que mostrava justamente esse paralelo que o preso faz com a vida dele. O preso dizia que viu ali que podia dar a volta por cima, tirar forças que nem sabia que tinha. Ou seja, eles buscam o programa pela remição, mas saem dele com muito mais do que isso”.

A coordenadora conta que, pelos resultados dos últimos meses, já é possível notar que a leitura tem funcionado também como uma porta de entrada para alguns detentos que tinham resistência em voltar a estudar: “Eles veem que são capazes, querem voltar a estudar, se matricular na escola da unidade, fazer o exame do Enem. A remição, de fato, acaba ficando em segundo plano”, completa, observando que, no último exame do Enem, seis internos foram aprovados para a Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj).

O juiz titular da VEP também se mostra contente com o projeto: “Diversas são as perspectivas positivas, dentre elas, a esperança que a leitura desperta, a ampliação dos horizontes, o melhoramento da autoestima, a agregação de valores éticos, a redução da ociosidade, o incentivo ao bom comportamento e a preparação do indivíduo, de certa maneira, à reinserção social”, observa Rafael Estrela.

Uma das primeiras pessoas a lutar pela implantação do projeto no Rio de Janeiro, a conselheira da OAB/RJ e ex-presidente do Conselho Penitenciário do Rio Maíra Fernandes comemora sua implantação: “Eu me empenhei muito pela aprovação da remição por leitura no Rio quando estava à frente do Conselho porque acredito que é um projeto simples. Não é nada inovador, pois já há um modelo em funcionamento nas unidades federais, portanto não entendo porque levou tanto tempo para que a VEP autorizasse sua implantação. A coisa boa foi que ninguém que lutava por ele o esqueceu ao longo desses anos e, enfim, podemos vê-lo em funcionamento”.

Maíra conta que, em suas visitas aos presídios, percebia a necessidade de programas alternativos para ocupar o tempo ocioso dos internos: “Infelizmente, há iniciativas de profissionais que trabalham na área, mas muita burocracia para implementá-las. Exemplo disso é uma simples videoteca, que não custa quase nada ao sistema mas que pode trazer um mundo de entretenimento aos detentos. Acompanhei à frente do Conselho casos como recusa de doação de televisão pela Seap. É muito difícil conseguir fazer qualquer coisa nesse sentido, por isso é uma vitória a efetivação desse programa”.

Ela acredita que a remição por leitura pode ser principalmente útil nos presídios femininos, em que há ainda mais necessidade de contato com o mundo externo: “Percebemos que havia um interesse enorme das mulheres encarceradas nesse projeto. Até porque, diferentemente dos homens, elas quase não recebem visitas. Quando o homem é preso todas as mulheres de sua vida vão visitá-lo. A mulher, não. Ficam muitas vezes esquecidas ali. Essa é uma forma de se conectarem com o mundo”.

A previsão da subsecretaria é de expansão para mais quatro unidades nos próximos meses. “Ampliar esse programa é mais do que nossa intenção, é nossa obrigação”, afirma Geovani Lima.

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