11/09/2017 - 14:55

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Shakespeare visto por juristas

11/09/2017 - 14:55

Shakespeare visto por juristas

A partir da obra do Bardo, que tratou das questões da humanidade e das relações do homem com o poder, textos buscam jogar luz sobre o papel da advocacia na sociedade contemporânea
 
VITOR FRAGA
É fato conhecido que diversas passagens das obras de William Shakespeare tocam em situações e questões afeitas ao mundo jurídico. No entanto, suas histórias possuem um valor universal, extrapolando as fronteiras do Direito – e do próprio tempo – e servindo como uma chave de leitura para a natureza humana. Foi essa  característica do universo shakespeariano que possibilitou a elaboração do livro Ele, Shakespeare, visto por nós, advogados (Edições de Janeiro, 2017), lançado em agosto. Na obra, 16 juristas abordam questões presentes nas criações do poeta e dramaturgo inglês, enfocando trechos de peças, de forma livre, através de artigos (e até mesmo de uma carta hipoteticamente dirigida ao próprio Shakespeare) que relacionam fatos e personagens criados há vários séculos com a realidade atual do Brasil.

A ideia é ajudar a preencher o que seria uma lacuna no debate público nacional. “A advocacia sempre tem que estar na vanguarda, tem um papel preeminente ao longo da história. Vivemos hoje uma discussão ética muito importante no país, sobre qual o papel do cidadão, o que esperamos dos políticos. A obra do Shakespeare trata das grandes questões da humanidade, mas fala muito dessa relação do homem com o poder. Um dos propósitos dele ao escrever as peças era exatamente fazer com que as pessoas fossem ao teatro para discutir esses temas, refletir sobre eles. Temos muita carência disso hoje no Brasil”, afirma um dos organizadores do livro, o advogado e professor de Direito Civil da PUC-Rio e da FGV Direito Rio José Roberto de Castro Neves. Ele também é autor de um dos textos, O canalha em Shakespeare, além de assinar a introdução.

A ideia, segundo Castro Neves, foi reunir um grupo de juristas “de muita sensibilidade e inteligência”, em busca do resultado mais rico possível. “Você sai do livro melhor do que entrou, certamente é levado a algum tipo de reflexão. Os textos são leves, e isso contraria um erro, o preconceito de que Shakespeare é sofisticado. Na verdade, ele era um autor popular, embora tenha escrito há séculos, o que obviamente faz com que a linguagem seja um pouco diferente”, argumenta. Castro Neves exalta a generosidade dos autores que, apesar do pouco tempo, pararam “para refletir sobre esse grande leitor da humanidade” que é Shakespeare. “Há uma ausência de tradição de advogados falarem sobre algo fora do campo do Direito. Essa iniciativa faz parte da tentativa de que a advocacia assuma sua posição de liderança nesse momento de vácuo ético”, defende. 

A edição cuidadosa, em capa dura, conta com ilustrações que remetem a elementos da época de Shakespeare (1564-1616). Os artigos são inéditos e buscam de forma geral provocar questionamentos em torno da seguinte questão: é adequada a formação jurídica de advogados, magistrados e outros operadores do Direito quando esta é limitada à leitura da doutrina?

Na opinião do editor e também organizador da obra, José Luiz Alquéres, os advogados que participaram da proposta “são também grandes humanistas”, e defendem de forma geral que para ser um bom operador do Direito é preciso conhecer profundamente a natureza humana. “E isso não é algo que se aprenda em textos jurídicos stricto sensu. É necessária uma formação humanística complementar e sofisticada, no sentido de que seja capaz de fazer compreender a complexidade das personalidades envolvidas nos diversos casos”, analisa ele, que cita o crítico literário Harold Bloom para definir a dimensão de Shakespeare: “Bloom afirma que Shakespeare é mais completo que a Bíblia”.

Castro Neves acredita que a obra se perpetuou “porque o dramaturgo não se rendia” a estereótipos. “Seus vilões não são bons nem maus, são de carne e osso, por isso nos identificamos ao ler. Ele não tem heróis. Em Ricardo II, por exemplo, o grande tema é um rei ungido que não é competente. Competente é seu primo, Bolingbroke. E aí surge a dúvida: é melhor ter um rei legítimo ou um competente? Discussão muito própria para os nossos tempos. São pérolas de inteligência e sensibilidade, ele testava muito o poder com suas críticas, exercitava no público o espírito crítico que tanto falta hoje”, observa.
 
Dramas antigos e atuais
Para ilustrar a atualidade dos personagens, o editor cita um exemplo surpreendente e extremamente significativo. “Nos Estados Unidos existe uma escola conhecida como Portia Law School, um reconhecimento dos artifícios válidos que a personagem utilizou em defesa de uma causa nobre”, explica Alquéres, referindo-se à faculdade de Direito criada em Boston em homenagem à personagem Pórcia de O mercador de Veneza – uma mulher que se disfarça de homem para atuar como advogada de seu marido (ver box).
 
Mas o que fez 16 grandes advogados de várias partes do país, que atuam com destaque em suas áreas, escreverem sobre Shakespeare em 2017? Alquéres reforça a tese da universalidade do Bardo – termo originalmente usado como sinônimo de poetas e trovadores de poemas épicos e que hoje é o epíteto de Shakespeare. “Quatrocentos anos antes de Freud, ele trata das motivações, de sentimento de culpa, repressões, desejos de poder e amor, enfim, grandes e permanentes questões da humanidade”, diz, ressaltando que os textos do livro fazem paralelos também com a realidade do Brasil, o que o torna extremamente atual. A parceria entre o editor e Castro Neves no universo shakespeariano é fecunda, e já gerou outros livros: O mundo é um palco e Medida por medida, este publicado em 2003 e cuja 5ª edição foi impressa com o selo da Edições de Janeiro em 2016.

A ponte entre o que foi escrito mais de quatro séculos atrás e o presente é também o caminho que percorre o professor e diretor da FGV Direito Rio, Joaquim Falcão, que assina o texto O que está feito, não pode ser desfeito: Macbeth, Moro e Teori. “A minha linha é a seguinte: você encontra os personagens shakespearianos em cada esquina, nos dramas pessoais, de família, da política, do Direito. É como eles se voassem nos séculos, e nós os reencontramos. O que fiz foi colocar isso no Direito”, explica ele, que já participou de outras obras sobre o mesmo tema. Dessa vez, Falcão retorna à ideia de que os personagens são atemporais, e “aterrissam” no Brasil atual. “Shakespeare explica os problemas da política e do Direito que estamos vivendo hoje a partir de padrões atemporais e universais. Lady Macbeth e seu marido assassinam o rei, que era hóspede em sua casa. Depois, [quando Macbeth é coroado o novo rei da Escócia em função da morte do anterior, que matara] são tomados pelo remorso e pelo medo, e quando o rei Macbeth chega ao limite, Lady Macbeth diz: ‘O que está feito não pode ser desfeito’. E no Direito?”, questiona Falcão, citando o processo da Lava-Jato. “O que entrou nos autos pode ser retirado dos autos? O Sergio Moro inclui no processo o áudio de Dilma com Lula, assegurando sua posse como ministro da Casa Civil. Em seguida, Teori Zavascki  diz para retirar dos autos, porque foi obtido de uma forma ilícita. Quer dizer, o que foi feito e está nos autos pode ser retirado? Esse é meu problema, é o que analiso”, esclarece.

Ele argumenta que as gravações foram ouvidas por milhões de pessoas, e confirmadas pela ex-presidente. “Pela ordem do ministro Teori, no processo, o que tinha sido feito foi desfeito. Embora não o tenha sido na realidade fora dos autos, portanto fora do Direito. O psicanalista Jorge Veschi diz que não se apaga a memória, apenas a redirecionamos. A pessoa vivenciou os fatos, aquilo lhe traz emoções. O juiz tem que ter a disciplina de se afastar de suas emoções. Mas a opinião pública não tem, os políticos não têm, os advogados e partes idem. E a psicanálise e a neurociência mostram que por mais que se tente, não é possível fazê-lo totalmente. Por mais disciplinado que fosse o Moro, e ele foi, o que ouviu está dentro dele. O que ele irá fazer com isso não sei, e acho que nem ele próprio sabe”, completa Falcão de forma bem-humorada, lembrando que as gravações não foram usadas naquele processo, mas influenciaram outros, inclusive o impeachment de Dilma Rousseff.

Mas a ideia de estudar essas comparações entre passado e presente atrairia estudantes de Direito, por exemplo? Falcão cita a matéria Direito e Shakespeare, ministrada na FGV desde 2013 por Castro Neves. “É uma disciplina que está presente regularmente na grade curricular, cada vez assumindo um tema central. Não é só Direito Civil ou Constitucional que interessa aos jovens, é preciso ter um estofo intelectual, isso é bom para o advogado. Apesar de ser eletiva, está sempre cheia. Então, há esperança”, comemora Falcão.
Com experiência na área cultural, a juíza titular da 4ª Vara de Órfãos e Sucessões do Rio de Janeiro, Andreá Pachá, é autora do texto Uma carta para William, em que ensaia uma comunicação direta com o poeta inglês. Ela atribui grande peso à formação humana que adquiriu. “Quando o José Roberto me convidou para participar do projeto, creio que foi mais em razão da relação afetiva que tenho com Shakespeare e o teatro do que de um profundo conhecimento acadêmico ou literário. Antes de ser juíza, fui roteirista de cinema e produtora de teatro. Trabalhei alguns anos com um grupo orientado pelo dramaturgo, escritor e roteirista Alcione Araújo, no qual fiz toda a leitura dos clássicos. Minha formação humana aconteceu muito mais fora do ambiente da Justiça. Esse grupo de estudo foi muito rico para isso”, lembra.

Pachá diz que “as referências transformadoras” que têm guardadas são sempre relacionadas a alguma leitura. “Alcione Araújo dizia que a cultura educa a sensibilidade, estou cada vez mais convencida disso”, salienta, revelando que se sente feliz em poder apresentar esse universo para os futuros advogados. “Se esse livro puder chacoalhar a garotada que chega à faculdade e aguçar sua curiosidade para ler os textos, tenho certeza que serão profissionais e seres humanos muito melhores. A humanidade avançou bastante na perspectiva tecnológica, no acesso aos bens de consumo. Vivemos em um mundo melhor hoje do que na Idade Média, embora a desigualdade seja gritante. Mas a nossa transformação humana, ideológica e sentimental passa por ciclos. Ou seja, avançamos em alguns momentos e retrocedemos em outros. Movimentos históricos são contraditórios, há retrocessos, mas hoje falamos de direitos que antigamente sequer chegavam às portas da Justiça. Esses movimentos mais recentes, especialmente após junho de 2013, trouxeram uma pauta de amorosidade, individualidade e subjetivação. Essas se tornaram pautas políticas, porque dizem respeito à nossa convivência em um determinado espaço”, analisa. 

Pachá finaliza seu texto afirmando que “o oposto da injustiça não é a justiça, mas o amor”. E explica: “Toda justiça que não é feita por amor não é justiça, é vingança. Em tempos de discurso de ódio nas redes sociais, de ‘justiçamento’ em tempo real, é muito importante afirmar o afeto e desconstruir a idealização da humanidade. E isso é sensacional em Shakespeare: não há super-homens, há seres humanos com todas as suas contradições. Se conseguirmos enxergar o tamanho da nossa humanidade sem essa idealização, estaremos em um bom lugar para conviver”, aspira.

Autor de Shakespeare e a concorrência desleal, o conselheiro seccional Gabriel Leonardos conta que, ao receber o convite para participar do livro, aceitou imediatamente. “Lembrei-me da famosa frase da saudosa Bárbara Heliodora, ‘tudo está na Bíblia ou em Shakespeare’, e pensei que certamente encontraria conexões do Bardo com a concorrência desleal, uma vez que esta remonta à antiguidade. Até então, meus vínculos com Shakespeare eram os de um simples leitor, e não de um estudioso. Foi mais difícil do que eu imaginava, e tive que reler diversas obras para encontrar as conexões com a concorrência desleal mencionadas no meu texto”, explica. Ele ressalta que o universo do Direito deve ser interdisciplinar. “Pontes de Miranda dizia que ‘quem só Direito sabe nem Direito sabe’. Estudar literatura, sociologia, psicologia, economia e outras áreas do conhecimento abre múltiplas oportunidades para o operador do Direito. Cada autor trouxe um pouco de sua experiência e sua visão de mundo para o livro. Todos são juristas com larga experiência, e certamente os leitores mais jovens encontrarão conselhos relevantes, enquanto que os mais velhos se identificarão com diversos pontos de vista expressos na obra. Todos irão aprender ou se divertir, ou ambos”, resume Leonardos.
 
Óculos para “ler” a humanidade
A inegável força de Shakespeare séculos após sua morte pode ser consequência de ele ter capturado “a essência não histórica das pessoas”, ou seja, aquela que não depende das circunstâncias, como acredita Joaquim Falcão. “Shakespeare é uma espécie de óculos sobre o humano que pode ser usado para entender diversas situações. Não sou um especialista no autor, mas gosto da analogia no tempo, de observar como nos séculos ao longo da história se repetem esses fenômenos do humano, das armadilhas e alegrias que todos vivenciamos. É um grande instrumento de analogias históricas, que aplico no meu dia a dia e no Direito”, conclui.

Essa relação entre literatura e Direito, observa José Luiz Alquéres, é um processo de colaboração mútua. “É talvez, de todas as relações entre profissões, aquela em que ambas mutuamente mais se amparem. O Direito em si é em parte abstrato, mas também flui através dos processos. O que são estes senão o registro dos fatos, com componentes de literatura em sua representação? É muito frequente um processo ser recheado de cartas, testamentos, depoimentos, gravações. Há uma recente preocupação com a possível alteração de gravações [que componham autos processuais], expondo que a linguagem pode produzir um certo enfeitiçamento, que afasta o que se está dizendo a verdade objetiva. Ou seja, conhecer bem a literatura e seus recursos é uma qualidade para advogados e juízes”, aponta o editor.

A ideia de ordem em Shakespeare estaria muito presente, o que torna sua relação com o Direito inevitável. “As tragédias acontecem porque a ordem se perde. E o papel do Direito, no fundo, é restaurar essa ordem, trazer de volta o equilíbrio quebrado. A tragédia existe por conta da humanidade. Se esses personagens não fossem o que são, não haveria tragédia. Assim como nossa vida, são nossas dificuldades que nos levam adiante. E, claro, há as virtudes que temperam os defeitos e vice-versa”, argumenta Castro Neves, que descreve o Direito como, antes de mais nada, uma atividade essencialmente humana. “O Direito é uma ferramenta de solução de conflitos e apaziguamento social. Em um mundo onde só houvesse amor não precisaríamos de advogados. Mas não é assim, o homem discute, diverge, e isso faz a vida mais rica. O conflito está em nossa natureza, temos que conviver com isso, e o Direito é a ferramenta que irá permitir essa convivência. Conhecer a natureza humana e as verdadeiras causas escondidas nas disputas é tão importante quanto conhecer o código”, conclui.

Fundada em 1908 com o nome de Portia Law School (hoje New England Law-Boston), a faculdade de Direito criada em homenagem à personagem de O mercador de Veneza oferecia, em sua origem, vagas apenas para mulheres, numa época em que boa parte das demais instituições daquele país sequer as aceitava como alunas. A maioria das estudantes era de filhas de trabalhadores e imigrantes. Durante décadas, entre as mulheres aprovadas no exame da Massachusetts Bar o maior percentual era de graduadas pela Portia. Desde 2014, a faculdade lançou programas de especialização em dois campos: legislação de propriedade intelectual e imigração. Mantém um viés crítico, opondo-se por exemplo às politicas de imigração conservadoras propostas por Donald Trump.

Em O mercador de Veneza, texto do final do Século 16, Pórcia é a titular de uma grande herança, que desperta paixão e interesse de muitos pretendentes. Bassânio acaba sendo o escolhido, porém após o casamento tem que enfrentar o tribunal no qual o comerciante Shylock reclama o pagamento de uma dívida em forma de um naco de sua carne, equivalente ao peso do valor emprestado. Pórcia então se disfarça de homem e se apresenta como advogado de Bassânio, usando sua inteligência, retórica e boa argumentação para salvar o marido.

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