09/05/2017 - 16:55

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Abuso de legislação

09/05/2017 - 16:55

Abuso de legislação

JOÃO PEDRO PÁDUA* 
Uma multidão fechava a pista da Avenida Delfim Moreira. Era 2007, cerca de 19h, e aquela tinha sido a maior Marcha da Maconha. Os remanescentes das quase 10 mil pessoas se encaminhavam para o local da dispersão, guiados por um carro de som. Subitamente, uma picape do Batalhão de Choque da PM forçou a sua entrada na frente do carro de som. Além de bloquear o caminho, a picape quase atropelou várias pessoas. Os policiais, com roupas camufladas e cara fechada, carregavam ostensivamente espingardas de bombas de gás. Um garoto qualquer jogou uma lata de cerveja na direção da picape. Ela passou longe de acertar qualquer policial, mas foi o suficiente. Estouros anunciaram bombas de gás lançadas em várias direções, a esmo. Policiais pularam de dentro do veículo com cassetetes e começaram a golpeá-los em qualquer direção. Os policiais convencionais que faziam o acompanhamento do evento também pegaram seus cassetetes e se juntaram aos colegas. Eu estava tentando demover os manifestantes de participar da confusão quando vi olhar vidrado do policial que veio na minha direção com o cassetete levantado. Só consegui fazer uma esquiva parcial. O cassetete pegou de raspão no meu peito. 

Horas mais tarde, na porta da delegacia, encontrei o capitão que era o líder do grupo dos agentes que fazia o acompanhamento da Marcha. Como tinha conversado com ele antes e me pareceu uma pessoa razoável, fui reclamar, inclusive do golpe que tinha levado.

“Pode ter sido até eu mesmo quem deu o golpe”, me disse ele num tom civilizado. “Nessa hora, a gente não distingue mais nada. Não foi pessoal.”
 
Como o Estado serve para fiscalizar condutas e mediar potenciais conflitos de interesse, assim como promover valores previstos na ordem jurídica, seus agentes multam, prendem, acusam, condenam e interditam. Esses poderes, embora necessários para que o Estado desempenhe suas funções, podem ser abusados. Montesquieu, no fim do Século 18, advertia que o poder corrompe e, por isso, precisa ser controlado.

Como em qualquer criminalização, a do abuso de autoridade parte da assunção de que a ameaça de punição dos agentes que extrapolam seus poderes incentiva esses agentes a não extrapolá-los.

Atualmente temos uma Lei de Abuso de Autoridade (4.898/1965) e alguns tipos no Código Penal que incriminam condutas abusivas de agentes do Estado. A Lei 4.898 foi editada no segundo ano da ditadura militar. Ela é, ao mesmo tempo, muito abrangente e muito restritiva. O artigo 3º, uma aparente norma incriminadora, está em desuso porque praticamente torna crime qualquer violação de direito individual. “Constitui abuso de autoridade qualquer atentado: a) à liberdade de locomoção”, por exemplo, não permite imaginar qualquer conduta específica – e, por isso, seria, ela mesma, uma violação ao princípio da legalidade estrita. 

O artigo 4o tem modelos de conduta. Alguns deles bastante similares aos propostos no PLS 280/2016 e no PLS 85/2017 (vide a seguir). “Constitui também abuso de autoridade: a) ordenar ou executar medida privativa de liberdade individual, sem as formalidades legais ou com abuso de poder”, por exemplo, já parece mais com um tipo penal. Mesmo assim, dificilmente algum agente é punido por esses crimes também.

O senador Renan Calheiros apresentou o PLS 280/2016, cujo texto em grande medida se baseava em projeto de 2009 apresentado à Câmara dos Deputados pelo deputado Raul Jungmann. O senador Randolphe Rodrigues apresentou o PLS 85/2017, como uma reação ao projeto anterior, usando texto sugerido pelo procurador-geral da República. Ambos foram apensados e encaminhados ao mesmo relator, o senador Roberto Requião, que apresentou, recentemente, uma emenda substitutiva unificando e modificando-os. Trataremos a seguir desse substitutivo, que está em discussão no Congresso.

Uma das justificativas do PLS 280/2016 foi que a Lei 4.898/1965 estaria “defasada”. Ela precisaria “ser repensada, em especial para melhor proteger os direitos e garantias fundamentais constantes da Constituição de 1988”. Para isso, no lugar das nove alíneas do artigo 4º da Lei 4.898/1965, previa 29 artigos de normas incriminadoras, com outros tantos parágrafos contendo figuras de equiparação. Essa não parece ser uma questão controversa. O substitutivo do senador Requião, baseado no PLS 85/2017 quanto à redação das normas incriminadoras, manteve as mesmas 29, além de adicionar artigos em outras leis (inclusive na Lei 8.906/1994, onde adiciona um tipo de violação de prerrogativas dos advogados).

A questão irresolvida é a possível utilização da nova lei para a punição de magistrados e membros do MP com o objetivo de intimidá-los – o assim chamado “crime de hermenêutica”. Isso ocorreria, por exemplo, quando um juiz decretasse uma prisão que depois viesse a ser reconhecida como ilegal ou quando um membro do MP apresentasse uma denúncia que viesse a ser reconhecida como sem justa causa (artigos 9º e 30º do substitutivo). 

Para evitar esses “crimes de hermenêutica”, o substitutivo prevê, já no seu artigo 1º, dois parágrafos. Um condiciona qualquer crime de abuso de autoridade a uma “finalidade específica de prejudicar outrem, beneficiar a si próprio ou a terceiro” ou “por mero capricho ou satisfação pessoal”. O outro estabelece que “a divergência de interpretação de lei ou na avaliação de fatos e provas (…) não configura por si só abuso de autoridade”, embora também diga que essa divergência tenha de ser “razoável e fundamentada”.

Deixando de lado os inúmeros problemas de dogmática penal que esses parágrafos geram — como a estranha previsão de um especial fim de agir feita em norma geral para todas as normas incriminadoras, ou a dúvida se o parágrafo 2º constituiria uma causa justificante, exculpante ou de exclusão da tipicidade –, é curioso notar que os mesmos riscos de “crime de hermenêutica” já existem na legislação atual. Basta reler o artigo 4º, a, da Lei 4.868/1965, acima. 

O problema do substitutivo não é que ele criminaliza a hermenêutica. É que pressupõe que pode existir uma “hipótese legal” evidente, cujo descumprimento seja um ato doloso. Ele não reconhece que a “literalidade” de uma norma é sempre uma tomada de posição potencialmente discricionária de qualquer aplicador, em qualquer caso, com qualquer norma. 

Esse pressuposto equivocado é compartilhado também pelos críticos do projeto. 

Em fechamento, devemos lembrar que o problema do abuso de autoridade não é um problema da falta de leis. É um problema de cultura jurídica. O Brasil nunca teve uma revolução liberal. A nossa cultura jurídica é estatista, coletivista, organicista. A ideia de que uma garantia individual possa valer mais do que o interesse da coletividade é estranha. Nesse contexto, sempre haverá a tentação do abuso de autoridade.

O policial que me deu uma cassetada sem “nada pessoal” não o fez porque não existe uma lei que puna a sua conduta. Existe. Ele fez isso porque era o que aprendeu que deve fazer. Uma lei nova não vai mudar isso.
 
Até porque, mesmo que ela seja aprovada, no Brasil é sempre uma questão em aberto se vai pegar…
 
*Conselheiro da OAB/RJ, professor de Direito Processual Penal da Universidade Federal Fluminense

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