09/05/2017 - 16:49

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Quilombolas, a longa espera pelos títulos das terras

09/05/2017 - 16:49

Quilombolas, a longa espera pelos títulos das terras

Competência para titulação passa à Casa Civil, que suspende novas outorgas. Representantes dos grupos criticam mudança de política para esses territórios
 
VITOR FRAGA
O governo federal pode deixar cerca de cinco mil comunidades quilombolas sem sua titulação, documento que garante a esses grupos a permanência definitiva nas terras ancestrais. Em resposta a uma solicitação de informações sobre a demarcação de um quilombo no município de Rio Claro (Sul Fluminense), ofício emitido no mês passado pela Casa Civil comunica “a devolução à Sead (Secretaria Especial de Desenvolvimento Agrário) de todos os processos relacionados com a matéria território de quilombolas”. A medida, na prática, suspende temporariamente a emissão de novos títulos de reconhecimento para Comunidades Remanescentes de Quilombos (CRQ) em todo o país. A pasta sustenta que a medida vigoraria até que o Supremo Tribunal Federal (STF) conclua o julgamento de uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ajuizada em 2004) sobre a legalidade do processo de demarcação – não há previsão de quando a matéria entrará na pauta. 

Em 2003, um decreto do então presidente Luís Inácio Lula da Silva garantiu às comunidades o direito ao autorreconhecimento, regulamentando a entrada e a tramitação de ações para titulação – e iniciando um movimento que em pouco mais de dez anos levou quase três mil CRQs a solicitarem certificação à Fundação Cultural Palmares (FCP), segundo dados de maio de 2016 da própria entidade. O processo iniciado na fundação culmina com a titulação definitiva pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra).

No entanto, não existe nenhuma determinação do Supremo para a suspensão da validade do decreto que regulamentou os procedimentos para certificação e titulação de quilombos. Em outras palavras, a lei questionada no STF continua em vigor, e a suspensão das titulações é uma decisão unilateral do governo. A TRIBUNA conversou com representantes de movimentos e associações, que criticaram o ofício da Casa Civil, entre outros motivos por considerá-lo parte de uma mudança de rumos na política para o setor. E traz, também, depoimentos que contam um pouco das inúmeras histórias de luta por reparação – parte deles obtido pelo trabalho da Comissão de Direitos Humanos (CDHAJ) da OAB/RJ.
 
Política nacional
O Decreto 4.887/03 definiu ritos e critérios para a demarcação dos territórios remanescentes das comunidades dos quilombos, definidos como “os grupos étnico-raciais, segundo critérios de autoatribuição, com trajetória histórica própria, dotados de relações territoriais específicas, com presunção de ancestralidade negra relacionada com a resistência à opressão histórica sofrida”. Desde então, a Fundação Cultural Palmares, ligada ao Ministério da Educação e Cultura (MEC), que era responsável por todas as etapas de reconhecimento, passou a ser a porta de entrada do processo, emitindo a certificação de autorreconhecimento das comunidades, dentro do Programa Brasil Quilombola. Esse é o primeiro passo de uma longa caminhada para um processo que termina com a titulação coletiva outorgada pelo Incra.

Antes do processo de titulação de terra, as comunidades devem ser certificadas pela Fundação Palmares, com base na auto-declaração. Aí abre-se o processo no Incra para o reconhecimento do território quilombola. É realizado então o Relatório Técnico de Identificação e Delimitação (RTID), com uma série de levantamentos fundiários, socioantropológicos e agroambientais, além de cadastros de famílias, entre outras atividades. Em seguida, é emitida portaria de reconhecimento do Incra, e a última etapa é a emissão do título.

No Brasil, 257 grupos tinham conseguido dar entrada em suas ações. Em 2016, esse número havia subido para quase três mil. Atualmente, existem 210 títulos emitidos, regularizando 1.046.300 hectares em benefício de 151 territórios, 241 comunidades e 16.009 famílias quilombolas, assim distribuídos: de 1995 a 2002 foram expedidos 44 títulos em benefício de 41 territórios, 89 comunidades e 6.459 famílias quilombolas; de 2003 a 2010, foram 78 títulos para 63 territórios, 102 comunidades e 5.147 famílias; e de 2011 a 2015, foram 88 títulos para 41 territórios, 50 comunidades e 4.403 famílias, segundo dados do Incra. Existem outros 1.536 processos em regularização – por já estarem em tramitação, são esses os afetados mais diretamente.
 
Estimativas das associações indicam que há mais de cinco mil comunidades quilombolas em todo o território nacional.

Durante idas e vindas da reforma administrativa realizada por Michel Temer ao assumir interinamente a Presidência da República, um ano atrás, tanto o Incra quanto a competência para a titulação foram transferidos de pasta por três vezes. Com a extinção do Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA), ao qual o Incra era vinculado, a Medida Provisória (MP) 726, publicada no dia da posse de Temer, transferiu a regularização das terras quilombolas para o Ministério da Educação e Cultura. Retificada após uma semana, a MP reconduziu a responsabilidade para o Incra. Em nova mudança dias depois, tanto o Instituto quanto a administração das solicitações foram integrados à Casa Civil, chefiada por Eliseu Padilha.

Até poucos dias antes da posse de Temer, o Incra publicou rotineiramente portarias de reconhecimento e Relatórios Técnicos de Identificação e Delimitação (RTID). A elaboração do RTID, a cargo de uma equipe multidisciplinar, é uma das etapas mais complexas do processo de regularização de territórios quilombolas. É composto de vários elementos, colhidos em parceria com entidades privadas, instituições de pesquisa, universidades e outros grupos. Um dos fatores mais importantes é o relatório antropológico,  que contém informações históricas, cartográficas, fundiárias, agronômicas e ambientais. Em maio de 2016, a FCP certificou 143 novas comunidades quilombolas. O que se teme é que os processos fiquem parados diante da posição do governo federal de aguardar a decisão do STF.

A mudança de rumos é criticada pelo coordenador nacional da Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq), Denildo Rodrigues. “Não é apenas o ofício da Casa Civil, estamos vendo um conjunto de ações, todo um processo de desmonte da política pública com relação aos territórios quilombolas, que está inserido em um contexto de desmonte da política de direitos dos trabalhadores e trabalhadoras brasileiras. Isso começa ano passado, logo após o processo de impeachment”, afirma. Ele critica as mudanças e as indefinições nos rumos da política nacional para os territórios. “A regularização das terras quilombolas, que estava no MDA, foi para a Fundação Palmares, ligada ao MEC. Agora se encontra na Casa Civil, e isso para nós é muito ruim. Já era ruim estar no MEC, porque quem estava assumindo o ministério naquele momento era o partido que apresentou uma ADI contra os direitos quilombolas no STF, no caso, o DEM. Era a raposa tomando conta do galinheiro”, resume Rodrigues.

No mês passado, o procurador da República Júlio José Araújo Júnior, de Volta Redonda, enviou à Casa Civil um pedido de informações sobre a demarcação do quilombo Alta da Serra do Mar, que fica em Rio Claro, no Sul Fluminense. Segundo reportagem publicada pela BBC Brasil em 18 de abril, a resposta da pasta, assinada pelos assessores Alexandre Freire e Erick Bill Vidigal, foi remetida ao Ministério Público Federal (MPF), afirmando que a legalidade da demarcação de áreas teria sido posta em dúvida pela Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 3.239 – levada ao STF em 2004 pelo então PFL, atual DEM. “Tudo recomenda”, escreveram, “aguardar o desfecho do julgamento, a fim de se observar o princípio constitucional da segurança jurídica”.

Para os defensores da política de demarcação das terras, o governo estaria se antecipando à decisão do Judiciário. A suspensão de titulações por tempo indeterminado é inédita desde o início das regularizações, em 1995. É impossível desconsiderar o contexto atual do intenso lobby da bancada ruralista no Congresso para a revisão da política para comunidades tradicionais e indígenas. Recentemente, o ministro da Justiça, Osmar Serraglio, declarou em entrevista que não apoiaria indígenas nem ruralistas, acrescentando que bastaria dar “boas condições de vida” aos indígenas, e que estes deviam “parar com essa discussão sobre terras” porque não “enche barriga”.

Rodrigues avalia que a reforma ministerial significou a “destruição de instrumentos de políticas públicas” importantes para os quilombolas. “Hoje, há vários processos parados na Casa Civil, sem resposta. Esse ofício veio coroar o processo de mudança de rumos da política para os territórios quilombolas de maneira vergonhosa, com racismo institucional explícito contra um setor da sociedade. Quando alguma lei está sendo questionada no STF e não foi julgada ainda, está em vigência. Portanto, a Casa Civil jamais poderia dar um parecer como aquele, que só reforça nossa indignação”, critica Rodrigues.

Educadora popular, Elaine Monteiro é coordenadora do Pontão de Cultura do Jongo/Caxambu, programa ligado à Faculdade da Educação da UFF, em parceria com 15 comunidades. “Foi também uma parceria com o Instituto de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) e outras entidades. Após o reconhecimento do jongo como patrimônio imaterial, as próprias comunidades pediram para criarmos o Pontão aqui na UFF, por ser uma universidade pública. O reconhecimento do patrimônio cultural está ligado à luta pela terra, ao direito à educação”, diz ela, que considera que, desde a mudança de governo, o processo parou. “As comunidades ficaram um tempo sem referência em relação a quem está no Incra, como vai funcionar a nova gestão.
 
Acompanhando os processos, vemos que o que está em jogo na verdade é a terra. E no Brasil, terra é poder. Os proprietários não pensam na garantia de um direito, pensam em não ceder suas terras para uma comunidade negra, que sempre trabalhou em situação de escravidão no Brasil”, afirma a educadora, citando um processo ajuizado em Barra do Piraí, no qual um proprietário tentou impedir a desapropriação de suas terras e, após ser vencido por uma decisão judicial, “destruiu o que pôde” antes de entregar a fazenda. 

“O que está em jogo é a perda de direitos. Quando se fala em garantias pelo Estado, levar a decisão para a ADI é tirar a questão dos direitos do Executivo e colocar apenas na mão do Judiciário”, denuncia Monteiro, que cobra mais agilidade no reconhecimento e na titulação. “As comunidades têm outra relação com a terra, ela não é um produto a ser mercantilizado. O seu Zé Adriano, do Quilombo Santo Antônio do Bracuí, fala que ‘a terra é mãe’, que terra não se vende. O neto dele diz a mesma coisa. Os jovens do quilombo querem estudar, mas não querem sair dali, e a titulação é uma forma de permanência. Para eles, a terra é a demanda principal, cujas relações de sociabilidade, identidade e valores são diferentes”, completa.
 
Rio de Janeiro tem cerca de 30 comunidades
Segundo informações da Fundação Palmares, existem no Rio de Janeiro hoje 36 comunidades certificadas, sendo cinco na capital, algumas delas em área urbana (veja, no box da pág. 22, lista das comunidades quilombolas fluminenses certificadas). Dessas, quatro tiveram os decretos de titulação publicados em Diário Oficial: Preto Fôrro (Cabo Frio), São José da Serra (Valença), Santana (Quatis) e Cabral (Paraty). Três estão na cidade do Rio: Pedra do Sal, Sacopã e Camorim.

Para o presidente da Comissão de Diretos Humanos da OAB/RJ, Marcelo Chalréo, a questão central é a luta pela titularidade da terra. “A posse eles já têm. É uma luta de décadas, e começa a tomar uma forma mais orgânica e expressiva a partir de final dos anos 1970. A Constituição de 1988 determina que o governo deve reconhecer e titular as terras identificadas como quilombolas. Alguns desses quilombos têm 100 anos ou mais”, argumenta. Ele ressalta que a comissão participa há alguns anos de reuniões com as associações quilombolas, na tentativa de auxiliar os processos de certificação e reconhecimento, “orientando no que diz respeito a documentos”, além de contribuir para a articulação delas com diversos setores da sociedade. “Temos acompanhado alguns processos junto ao Incra, em particular na comunidade do Camorim (Zona Oeste), mantendo os canais de diálogo da sociedade democrática. É uma luta por um direito previsto na Constituição e é o mínimo que o Estado brasileiro deve após séculos de escravidão. Como temos compromissos com os direitos humanos e as garantias constitucionais, é nosso papel lutar pela efetividade desses direitos”, diz. Ao longo de 2016, foram realizadas diversas visitas da CDH a comunidades no território fluminense, e também a alguns locais fora do estado, a convite de outras organizações.

A TRIBUNA visitou o Quilombo do Grotão, que existe desde os anos 1920, em Niterói, e foi um dos últimos a receber a certificação, em 2016. Os quilombolas enfrentaram, como muitos, a questão da especulação imobiliária. “Chegaram a vir pessoas trazendo compradores. Nos anos 1950, botavam fogo nas plantações. Meu avô, Manoel Bomfim, trabalhou durante 28 anos para a fazenda, desde a década de 1920. Quando a fazenda faliu, o que foi dado a ele foi essa terra e mais duas mil mudas de banana”, conta o líder da comunidade, José Renato da Costa, conhecido como Renatão do Quilombo. Nos anos 1980, um estudo da UFF sobre a chuva na Serra do Mar gerou o movimento que criou o Parque da Serra da Tiririca. “Veio o pessoal da academia, e em 1992 conseguiram criar o parque. Com menos de 10 anos, começaram a mudar os limites, desapropriaram lotes e retiraram algumas casas. Aí recomeçou a luta pela terra”, acrescenta. 

Renatão diz que, em 2005, uma emenda do deputado Marcelo Freixo (PSOL) garantiu que as casas dos moradores que estavam no local há mais de 50 anos não seriam desapropriadas. “Mas o movimento não para, essa foi uma ação provisória. É sempre preciso enfrentar a adequação à questão do Estado. Nossa luta aqui foi para poder plantar e permanecer com as atividades culturais. Já temos a certificação, mas não a titulação da terra. Só então teremos certeza de que as futuras gerações do quilombo podem ficar tranquilas. Mas isso vai ser um avanço do movimento. A gente nunca pode se dar por satisfeito, a cada hora tem uma posição política que muda muito a vida”, resume o líder quilombola. As irmãs, o filho e os sobrinhos dele trabalham na manutenção da comunidade, e apenas as atividades culturais envolvem cerca de 70 pessoas. Durante um período de 45 dias que exerceu o mandato de vereador pelo PSOL em Niterói, em 2013, Renatão do Quilombo foi responsável pela criação do Dia de Resistência das Comunidades Tradicionais (dia 3 de agosto). “Entidades como a OAB/RJ, as universidades, são parte integrante da luta, que não é só nossa, é também da sociedade. Se essa luta fosse de todos, nosso estado não estava tão violento. A violência em si está na falta de atenção, pela não integração das pessoas na sociedade. O que vemos hoje é resultado disso. Não pode haver apenas a lei no papel e ela não ser cumprida. O que mais acontece é injustiça, em especial com o povo quilombola”, salienta.

Entre os depoimentos colhidos pela CDH da OAB/RJ, um dos mais significativos foi o de Jorge dos Santos, conhecido como seu Pingo, que foi líder do Quilombo Cafundá Astrogilda, em Vargem Pequena (Zona Oeste).
 
Seu Pingo faleceu no final de 2016, aos 70 anos, alguns meses após a entrevista à comissão: “Quando a escravidão foi abolida, mandaram todos embora das fazendas da região. Os escravos foram ocupando as terras chamadas de ‘os ermos do cafundó’, de onde veio o Cafundá. Eram terras inóspitas, ninguém queria. Meu pai se criou aqui, desde os anos 1920, conseguiu sobreviver da agricultura e criar os filhos com a roça. Só íamos lá embaixo no armazém comprar querosene, sal e farinha de rosca. Quase não existia médico naquela época, as pessoas vinham aqui procurar meu pai, Celso, que tinha um centro de tratamento espiritual, com base na umbanda. Ele trabalhava também com homeopatia, através de plantas medicinais. Era autodidata, utilizava um livro como referência. Manter essa terra como área quilombola é importante para preservarmos memória dos nossos antepassados”.

Comunidades reconhecidas no Rio de Janeiro
Santa Rita do Bracuí (Angra dos Reis)
Alto da Serra do Mar (Angra dos Reis/Rio Claro)
Sobará (Araruama)
Tapinoã (Araruama)
Boa Esperança (Areal)
Rasa (Búzios)
Baía Formosa (Búzios)
Preto Forro (Cabo Frio)
Botafogo (Cabo Frio)
Maria Joaquina (Cabo Frio)
Maria Romana (Cabo Frio)
Fazenda Espírito Santo (Cabo Frio)
Caveira (Cabo Frio/São Pedro d’Aldeia)
Conceição de Imbé (Campos dos Goytacazes)
Cambucá (Campos dos Goytacazes)
Aleluia (Campos dos Goytacazes)
Batatal (Campos dos Goytacazes)
Maria Conga (Magé)
Ilha de Marambaia (Mangaratiba)
Fazenda Santa Justina/Santa Isabel (Mangaratiba)
Cruzeirinho (Natividade)
Grotão (Niterói)
Cabral (Paraty)
Campinho da Independência (Paraty)
Tapera (Petrópolis)
Santana (Quatis)
Machadinha (Quissamã)
Família Pinto (Rio de Janeiro)
Pedra do Sal (Rio de Janeiro)
Cafundá Astrogilda (Rio de Janeiro)
Camorim/Maciço da Pedra Branca (Rio de Janeiro)
Dona Bilina (Rio de Janeiro)
São Benedito (São Fidélis)
Deserto Feliz (São Francisco de Itabapoana)
Barrinha (São Francisco de Itabapoana)
São José da Serra (Valença)

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