09/05/2017 - 16:56

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Tribunal de rua

09/05/2017 - 16:56

Tribunal de rua

Pesquisa do Cesec avalia aceitação da população carioca à frase ‘bandido bom é bandido morto’. Dados são melhores se comparados ao resto do Brasil, mas direitos humanos ainda não são aceitos como forma de controle da criminalidade
 
RENATA LOBACK
Ainda estamos em maio e os índices da violência urbana no Rio de Janeiro neste ano já impressionam. A cada dia são registrados em média dez tiroteios. O aumento de roubos de veículos – 40,3% em relação a 2016 – é o maior mensurado pelo Instituto de Segurança Pública (ISP), que passou a aferir os índices de criminalidade em 1991. Frente a tanta violência, o medo gera, em parcela da população, tolerância e até certo apoio ao uso extremo da força. Para medir a adesão aos chavões pró-justiçamento, pesquisadores do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (Cesec) da Universidade Cândido Mendes resolveram aprofundar o pensamento da população do Rio de Janeiro sobre o tema. Através da pesquisa Olho por olho? O que pensam os cariocas sobre bandido bom é bandido morto, divulgada no início de abril, o grupo, mais do que quantificar a adesão à frase, buscou encontrar as bases para desconstruir essa lógica.

Realizado nos meses de março e abril de 2016 com mais de 2.300 pessoas ouvidas, o estudo – coordenado pelos sociólogos Julita Lemgruber e Ignácio Cano e pela professora de economia Leandra Musumeci – encontrou números animadores. No Rio de Janeiro, a maioria da população (60%) discorda da frase. É um resultado otimista se comparado ao pensamento nacional. Em 2016, levantamento amostral feito pelo Instituto Datafolha, a pedido do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, indicou que 57% dos brasileiros apoiavam a ideia. 

Apesar disso, a pesquisa encontrou dados contraditórios no que se refere à compreensão da população sobre o que são os direitos humanos. Para 73% dos entrevistados, tais direitos atrapalham o combate ao crime, e 56% afirmam que quem defende esta pauta só está defendendo bandido. Ainda assim, menos da metade dos ouvidos (48%) acredita que bandidos não merecem ter direitos e apenas 25% acham que os problemas de segurança seriam resolvidos se a polícia tivesse licença para matar. Para outros 73%, um criminoso é capaz de tornar-se um cidadão de bem.

Na opinião de Julita Lemgruber, mesmo com uma baixa avaliação no conceito geral dos direitos humanos, as pessoas demonstraram apoiar as pautas da área quando questionadas mais a fundo. “As opiniões não são monolíticas. Mesmo com um resultado à primeira vista negativo, fica a sensação de que é possível desconstruir esta ideia inicial”, avalia.

Tal visão é compartilhada pelos presidentes das comissões de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro, deputado Marcelo Freixo (PSOL), e da OAB/RJ, Marcelo Chalréo. Segundo Freixo, quando o tema direitos humanos aparece sem o termo, é aceito: “A maioria das pessoas enxerga que a nossa polícia é muito violenta e não deve ter o direito de execução. Da mesma forma, a maioria também acredita que o sistema penitenciário deveria ter outro papel. Quem defende esses termos está defendendo direitos humanos”. 

Para Chalréo, falta às pessoas uma dimensão dos direitos humanos sob sua ótica coletiva, como direito à saúde, à educação, ao saneamento básico, ao transporte e a garantias individuais, inseridos num plano geral do direito à cidadania. “Esse não era o objetivo da pesquisa, mas se ela aprofundasse os outros aspectos englobados pelos direitos humanos veríamos que o apoio a estas pautas seria ainda maior. No entanto, acredito que mesmo assim, ao colocar o nome direitos humanos no meio, haveria rejeição”, aponta o presidente da comissão da Seccional.

O interesse de Julita Lemgruber pela percepção da população sobre o tema é antigo. Em 1986, ela coordenou pesquisa para a OAB/RJ que traçou um perfil dos conflitos e contradições no trabalho da Polícia Civil. O estudo, feito a pedido do então presidente da entidade, Nilo Batista, já demonstrava uma precária interpretação sobre a pauta dos direitos humanos, segundo a socióloga. “Estávamos saindo da ditadura civil-militar. Durante esse período, militante de direitos humanos defendia presos políticos. Basicamente a classe média defendendo a classe média. Quando os presos passaram a ser ‘comuns’, a relação da população com o tema e com os ativistas começou a mudar. Coincide com um momento em que os índices de criminalidade disparam, motivados, principalmente, pelo deslanchar da guerra às drogas no país”, detalha.

Desde então, pondera Lemgruber –, a pauta foi mal conduzida por lideranças governamentais, instituições e militantes ligados ao tema. “Precisamos fazer um mea culpa. Nós não soubemos definir para a população o que se entende por direitos humanos e ao longo do tempo isso se transformou na percepção de defesa de privilégios a bandidos”. 

Marcelo Freixo reforça o entendimento da socióloga: “As organizações se preocuparam pouco em falar para fora das bolhas. O que parece é que os movimentos se bastaram. Trabalhamos nesse tema há anos e, pelo visto, não trabalhamos bem. Mesmo quando a pessoa defende direitos humanos ela não se vê defendendo direitos humanos. Nós nos preocupamos com a ética do tema, mas esquecemos da estética. As denúncias são feitas, e elas são importantes, mas não nos preocupamos com sua qualidade pedagógica: a quem atingimos? As pessoas entendem o que estamos denunciando?” 

Para Lemgruber, a pesquisa mostra que está na hora de fazer o dever de casa. “Precisamos conseguir que as pessoas entendam que enquanto todos não tiverem seus direitos respeitados nenhum de nós terá nossos direitos respeitados. Está na hora de aproveitar as contradições deste estudo e trabalhar nas brechas”, defende.

Quem são os bandidos?
Uma alusão recorrente ao primeiro governo de Leonel Brizola no Rio de Janeiro (1983-1987) era de que, ao impedir policiais de entrar em barracos sem justificativa legal, estaria resguardando bandidos. “Evitar invasão de domicilio é a defesa da lei. Mas defender a lei, dependendo de para quem você a defende, é visto como defesa de criminoso. Precisamos destruir a ideia de que os direitos humanos protegem bandidos, mas antes precisamos definir quem a sociedade vê como tal”, analisa Marcelo Freixo. 
 
Para ele, esta definição tem um corte social, racial e territorial: “A defesa dos direitos humanos não é a defesa de bandidos. É a do cumprimento da lei para todos. Não pode ter tortura, não pode ter execução sumária. Simples assim. Esse tipo de amparo não pode ser definido por quem sofre a violação. Se há violação há necessidade desse embate”.

De acordo com o deputado, a perpetuação de tal pensamento está diretamente ligada a uma sociedade desigual, violenta e que tem no medo um instrumento forte para o processo de dominação das relações de poder. “Em nossa sociedade, produzimos o medo sobre territórios e classes perigosos. Quem transmite medo não gera tolerância e é apto às violações, já que não é visto como um igual. O medo cria esse distanciamento”, observa.

A angústia, a insegurança e a sensação de impunidade são apontadas por Julita Lemgruber razões que levam à população a aderir ao justiçamento. “As pessoas não aguentam mais a violência e não acreditam no sistema de Justiça criminal”, diz.
 
A socióloga destaca, ainda, a forma como a violência é retratada: “Um tiroteio em bairro nobre é visto como um absurdo, mobiliza debates, gera declarações de autoridades e a adoção de medidas preventivas. A população das favelas convive com tiroteios quase que diários e isso sequer chega à imprensa. A polícia é muito mais violenta nas favelas, mas não só essa instituição criminaliza a pobreza. A mídia e o sistema de Justiça criminal como um todo também mostram sua mão mais pesada quando os acusados são pobres, negros e favelados”. 

Para Freixo, é importante que a luta pelos direitos humanos seja uma reafirmação da lei. “Isso pode parecer pequeno, mas estamos dialogando com uma sociedade que nega direitos a determinados grupos. Antes de ser uma luta por liberdade, a bandeira dos direitos humanos é pela igualdade social”, pondera.

Onde a mão é mais pesada
Dos entrevistados na pesquisa do Cesec, 69% acreditam que a polícia não tem capacidade de distinguir trabalhador de bandido, enquanto 62% afirmam que a polícia no Rio de Janeiro mata demais, 66% a consideram mais violenta com os negros e 75% dizem que a corporação é mais violenta na favela.

Presidente da Comissão de Segurança Pública da OAB/RJ, Breno Melaragno diz não ser de hoje a percepção negativa da sociedade em relação às polícias. “Em um sistema em que uma instituição militar é responsável pelo policiamento preventivo, a população apontou na pesquisa o que já está claro há tempos: há erros e eles são sentidos na pele”, destaca. Para ele, tais apontamentos referem-se, principalmente, à atuação da Polícia Militar, ponta de lança da segurança pública.

Hoje, um morador de favela já tem consciência sobre seus direitos à saúde, educação, saneamento básico. Mas, segundo Lemgruber, no que se refere à segurança oferecida pelo Estado, falta esclarecimento sobre os limites que deveriam ser respeitados.

“Já conheci inúmeras mães com filhos mortos pela Polícia querendo se justificar. Elas mostram a carteira de trabalho do filho para provar que ele era um cidadão de bem. Outras assumem que, dentro da família, aquele se desviou. É como se elas se justificassem. E no fundo é essa a percepção: de que a violência policial faz parte.
 
Essas pessoas, assim como todos os outros moradores do Rio de Janeiro, querem segurança. Em nenhum lugar admite-se que invadam uma casa sem mandado, que agridam um cidadão. Na favela até a morte soa como permitida”, lamenta a socióloga. 

Melaragno também acredita que a expansão da noção de cidadania seria uma solução para esse tratamento  pesado e desigual. “O projeto das Unidades de Polícias Pacificadoras (UPPs) tinha um grande potencial e fracassou, justamente, porque só a força repressiva não resolve problema algum. Sem dar cidadania – na base de educação, saneamento, lazer e cultura –, qualquer esquema de segurança irá ruir”, avalia.

O investimento em inteligência como forma de combate ao crime é a outra solução apontada pelo presidente da Comissão de Segurança Pública da Ordem. “Falta estrutura material para as polícias. A Civil estava num caminho de crescimento que foi diretamente afetado pela crise econômica do Estado do Rio. Precisamos ter a capacidade de não só ter efetivo na rua combatendo crimes pontuais, mas principalmente estrutura para identificar o foco dos problemas. Nossa violência é grande, com índices alarmantes. Temos meios para encontrar a solução dentro do sistema de Justiça criminal”, defende. 

De zero a dez, os entrevistados foram incitados a dar notas às polícias e à Justiça. A visão negativa das corporações se repetiu (5.8 para a Civil e 4.9 para a Militar). No entanto, o sistema de Justiça teve uma avaliação ainda mais negativa: apenas 3.5 de média.

Presidente da Comissão de Prerrogativas da OAB/RJ, Luciano Bandeira diz que esse dado aparece principalmente pelo distanciamento criado entre o Judiciário e a população. “Há demora na entrega da prestação jurisdicional. As decisões soam como impostas e, a partir daí, cria-se um afastamento e uma desconfiança no cidadão. Pelo que vemos na Ordem, através das reclamações que chegam às comissões de Direitos Humanos e de Prerrogativas, a sociedade passa a não acreditar mais que a Justiça é o verdadeiro instrumento do Estado democrático na solução de qualquer conflito”, analisa Luciano. 

Mesmo confiando pouco na Justiça, os cariocas defendem que o endurecimento penal seria uma solução: 79% afirmam que penas mais rigorosas reduziriam a criminalidade e 86% acham que menores que cometem crimes violentos devem ser julgados como adultos.

Breno Melaragno rebate tal entendimento. “É uma visão distorcida, já que inúmeras pesquisas apontam que aumentar pena ou tornar mais rígida uma punição não inibe a prática criminosa. Mas esse dado mostra que um outro bordão, caso fosse suscitado pelos pesquisadores, teria um número de concordância grande: a Polícia prende e a Justiça solta. Fica a impressão de que o Judiciário é leniente e brando com os criminosos”, frisa.

Estatisticamente, segundo Melaragno, essa sensação não é real. “Nas condições carcerárias brasileiras, um ano vale muito mais. Além disso, há um crescimento abrupto no número de presos, principalmente em relação aos provisórios. Os maiores motivos de prisão são: tráfico, roubo e furto. Sendo que o furto, que é uma subtração sem violência e grave ameaça, é um crime em que poderia ser aplicada pena alternativa. Nossa Justiça prende muito, sim. Nossa população carcerária é uma das maiores do mundo e nossa legislação penal infla a cada ano.
 
Foi o jeito encontrado pelo Congresso Nacional para atender aos anseios punitivos da população. Mas volto a bater na tecla, se isso resolvesse a situação, desde o advento da Lei de Crimes Hediondos, em 1990, teríamos queda na criminalidade. E sabemos que não foi o que aconteceu”, pondera.

Na vigência da atual Constituição é impossível se instituir prisão perpétua ou pena de morte, como defenderam alguns dos entrevistados pelo Cesec, explica o presidente da Comissão de Segurança Pública: “Os políticos que bradam esta bandeira estão sendo demagogos, sabem que isto não é possível. E como no Brasil não tem prisão perpétua e nem pena de morte, o preso que sobrevive ao cárcere andará nas mesmas calçadas que você. É bom repensar nosso sistema penal para que a gente recupere esse detento e não o torne ainda pior do que quando entrou. Direitos humanos para presos significam condições mínimas para que ele possa um dia se regenerar”.

Falta protagonismo político
Presidente da Comissão de Direitos Humanos da OAB/RJ, Marcelo Chalréo acredita que, além das falhas dos próprios militantes, a mídia e o poder público reforçaram ao longo dos anos a visão negativa da sociedade à pauta dos direitos humanos. “A grande imprensa e o capital fazem esse tipo de confusão. Criam um confronto de interesses, um antagonismo com o propósito de que as pessoas não percebam que uma coisa não é impeditiva da outra. Desde a ditadura procurou-se criar a ideia de que os direitos humanos protegem criminosos. Autoridades e setores do Estado são imbuídos de afastar qualquer interface com o tema. A política de direitos humanos não é protagonista no Estado brasileiro”, argumenta.

Apesar de admitir que as pautas de direitos humanos foram mais abraçadas por políticos representantes de partidos de esquerda, o deputado Marcelo Freixo não acha que a dificuldade de acesso ao tema seja consequência da polarização política que vivemos. “Em outros países, a luta por direitos humanos não é necessariamente da esquerda e também há rejeição. Essa negação é anterior à polarização da esquerda com a direita”, defende.

Para o parlamentar, é preciso deixar claro, inclusive, que nem toda sigla ligada à esquerda é defensora dos direitos humanos. “Da mesma forma, há uma parte da direita que tem simpatia pelo tema. As violações cometidas pelo capitalismo colocaram os que contestam esse sistema como defensores de direitos humanos. Mas é importante ressaltar que tais direitos também são violados no mundo socialista. É bom que se diga isso”, aponta. 
 
Fazendo o dever de casa
Campanhas, palestras, humor. Para Julita Lemgruber são muitos os caminhos apontados pela pesquisa. “Nossa pauta é mal vista, mas não foi descartada. Há brechas e é nelas que devemos atuar. Precisamos nos repensar, avaliar nossa forma de abordagem e tentar achar uma maneira de abrir o diálogo com as pessoas que renegam a instituição direitos humanos. O caminho do humor é uma boa saída para essa abertura. Às vezes, uma charge traduz numa imagem o que longos textos não conseguem explicar. Se hoje no Brasil uma parte da população desconhece o tema, é uma culpa que precisa ser dividida por todos nós que acreditamos que direitos humanos e controle da criminalidade são compatíveis. Precisamos juntos fazer nosso dever de casa e compensar o tempo perdido”, defende a socióloga.

Espalhar a noção de que toda a sociedade ganha com a garantia de direitos humanos, “inclusive os policiais, que estão nas ruas no combate direto ao crime”, é considerado por Breno Melaragno o melhor caminho apontado pela pesquisa.

Numa tentativa de difundir este tema, a Comissão de Direitos Humanos da Alerj já desenvolve um trabalho em conjunto com o setor de psicologia da Polícia Militar. “Fazemos o atendimento de familiares de policiais mortos há um tempo, mas estamos desenvolvendo um protocolo em parceria com a própria corporação. Um policial é morto a cada dois dias. Nossa pauta não é excludente desse grupo. Muito pelo contrário, juntos podemos fazer um trabalho mais forte”, explica Marcelo Freixo.

Como na letra da canção Tribunal de rua (Marcelo Yuka, O Rappa), se o cano do fuzil refletiu o lado ruim do Brasil, está na hora, de geração em geração, mudar esta realidade, para que todos no bairro possam fazer uma nova lição.

A equipe de reportagem da TRIBUNA procurou a Secretaria de Estado de Segurança Pública e o Tribunal de Justiça, mas as duas instituições preferiram não se manifestar sobre as críticas apresentadas no estudo.

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