03/08/2018 - 20:59

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Anistia vale para quem torturou?

03/08/2018 - 20:59

Anistia vale para quem torturou?

Anistia vale para quem torturou?

 

 

A lei penal não pode retroagir

 

Wladimir Antonio Ribeiro*

 

A Constituição de 1988 não diz que a tortura é crime imprescritível, afirma isso apenas em relação a outros crimes. Mas diz que a prática de tortura é crime insuscetível de graça ou anistia. A conclusão é que o crime de tortura prescreve, porém não está sujeito à anistia.

 

Contudo, o Direito Internacional muitas vezes reconhece a imprescritibilidade. A mensagem é a de que o torturador deve ter a certeza de que nunca será perdoado, a fim de dissuadir a prática dos atos de tortura.

 

No Direito interno, o crime de tortura só foi tipificado em 1997. E a lei penal não pode retroagir. Com isso, antes de 1997, podem ter ocorridos outros crimes, mas não há que se falar em crime de tortura.  No Direito Internacional, a condenação à prática de tortura foi disciplinada por Convenção da ONU de 1984, mas a mesma Convenção prevê que os atos de tortura devem ser considerados crimes segundo a legislação de cada Estado (Art. 4º, I). Conclui-se: a punição aos atos de tortura deve também atender ao princípio de que "não há crime sem lei anterior que o defina".

 

Entra-se, assim, num campo pantanoso: a norma de combate à tortura, por mais generosos que sejam seus objetivos, pode derrogar as garantias constitucionais da irretroatividade e da segurança jurídica? Será que o movimento dos direitos humanos está ingressando na perigosa seara de se relativizarem os direitos e garantias individuais em nome da punição eficaz, postura cada vez mais usual em tempos de crime organizado e de terrorismo, em que, contraditoriamente, quer-se fazer crer aos cidadãos que devem se proteger abrindo mão de seus próprios direitos? Será que os militantes dos direitos humanos estão flertando com o "Direito Penal do inimigo"?

 

E há, ainda, o problema da Lei de Anistia. É legítimo a OAB questionar uma lei de cuja elaboração participou? Tenha-se em conta de que a Lei de Anistia integra os acordos que permitiram a elaboração da Constituição de 1988. A Lei de Anistia equivale, por exemplo, à Emenda Constitucional que reconheceu poderes constituintes aos parlamentares eleitos em 1986 - ou seja, integra o Poder Constituinte Originário. Vê-se, assim, que, por mais bondoso que seja o propósito de se questionar a Anistia, é ele antijurídico.

 

Em suma: se é correto conhecer o passado, não se pode olvidar que 1988 foi o fim de um período, que não se pode mais abrir. Nunca mais.

 

*Advogado e professor universitário. Mestre em Direito Constitucional pela Faculdade de Direito de Coimbra

 

 

Tortura não é crime político ou conexo

 

Cezar Britto*

 

O Programa Nacional de Direitos Humanos recolocou a polêmica em torno da punição aos que cometeram crimes de tortura ao tempo da ditadura militar. Falou-se - fala-se - em revisão da Lei de Anistia.

 

De parte da OAB, que encaminhou em 2009 Ação por Descumprimento de Preceito Fundamental ao Supremo, não se trata de rever a lei, responsável pela paz política após a redemocratização.

 

A Lei de Anistia é intocável. Trata-se de avaliar se aqueles criminosos são, de fato, beneficiários dela. Achamos que não. A lei tratou de crimes políticos e conexos - decorrentes de um combate político armado. Crimes de tortura e/ou assassinato a prisioneiros indefesos, depois da rendição, estão fora dessa qualificação. Não eram parte do combate político.

 

Se, mesmo em guerras convencionais, tortura é crime, sujeito a punição em tribunais internacionais, que dirá em conflitos políticos internos, envolvendo patrícios? Nos termos da Constituição, é crime comum - hediondo e imprescritível -, sem conteúdo político. Cabe ao Estado zelar pela integridade física dos que mantém sob guarda, não importa o delito cometido.

 

Esse o teor efetivo da discussão, hoje desviada de seu eixo. É claro que a Lei de Anistia vale para os dois lados, mas no que de fato abrangeu e foi pactuado.

 

Se há conduta fora daquele compasso - não importa o lado -, deve ser reavaliada, para que não se cubra com o véu da impunidade os seus autores. Daí a importância da abertura dos arquivos da ditadura. Os que se opõem alegam que houve atrocidades de ambas as partes. Que venham à tona, então, até porque, no que se refere à tortura de prisioneiros, os casos conhecidos envolvem apenas o lado derrotado.

 

Mas se há casos similares no lado derrotado, o país também precisa saber. O essencial é que fique claro que tortura é crime imprescritível, alheia ao combate político e não prevista no pacto da Lei de Anistia. Não se trata de revê-la, mas de postular sua correta aplicação.

 

O regime militar, ao negar que autorizasse torturas, deixou claro que aconteciam fora de seu domínio. Seriam, mesmo num regime de exceção, anomalias fora de controle, à margem da luta armada e dos comandos.

 

Então por que temer a responsabilização dos delinquentes? Ao contrário, este é mais um motivo para a abertura dos arquivos e o exame das denúncias. Em que isso configura revanchismo? Quem não deve, não teme - e deveria inclusive desejar essa abertura, que, ao esclarecer a realidade, os liberta da incômoda suspeita de cumplicidade.

 

*Ex-presidente do Conselho Federal da Ordem

 


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