03/08/2018 - 20:59

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O Historikerstreit e a Comissão da Verdade

03/08/2018 - 20:59

O Historikerstreit e a Comissão da Verdade

O Historikerstreit e a Comissão da Verdade

 

Guilherme Peres de Oliveira*

 

A publicação da nova versão do Programa Nacional dos Direitos Humanos (PNDH3) deflagrou acesa polêmica acerca de diversos de seus pontos. Dentre eles, a instauração da chamada Comissão da Verdade, destinada a apurar as violações a direitos humanos perpetradas durante o governo militar, causou intensa resistência por parte dos militares e dos setores mais conservadores da sociedade brasileira.

 

Para os que são a favor da criação da Comissão, a comparação com o que ocorreu em outros países do Cone Sul - que também passaram por ditaduras militares na mesma época - é inevitável. Argentina, Uruguai, Chile e Paraguai, argumentam eles, já abriram os arquivos de suas respectivas ditaduras, e isso não causou nenhuma conflagração social, como argumentam os alarmistas partidários da posição contrária.

 

Muito embora a comparação seja absolutamente pertinente, a justificativa contida no próprio PNDH3 faz lembrar muito mais o debate público que se instaurou na Alemanha na década de 1980 (mais especificamente, no Verão de 1986, prolongando-se até meados de 1987), entre, de um lado, historiadores de orientação conservadora e, de outro, estudiosos como o festejado filósofo Jürgen Habermas.

 

O episódio, que ficou conhecido como Historikerstreit - a tradução mais comum é "Debate com os historiadores" -, consistiu, em suma, na tentativa de responder às seguintes questões: Qual a melhor estratégia para reconstruir a cidadania do povo alemão? Racionalizar e mitigar o passado nazista ou enfrentar de cabeça erguida tal passado a fim de superá-lo coletivamente?

 

Para os referidos historiadores, liderados por Ernst Nolte, Hillgruber e Sturmer, o melhor era considerar o nazismo - e o Holocausto, por conseguinte - apenas mais um movimento normal do pêndulo histórico - sem tratá-lo como um episódio singular da história da humanidade - para, assim, esquecê-lo e superá-lo.

 

Habermas, de outro lado, apoiado largamente no estudo de Freud intitulado Luto e melancolia (1917), defendia veementemente o confronto aberto com o passado nazista, pois, argumentava, só assim era possível expurgar os fantasmas do passado reconstruir a Alemanha. A cidadania alemã deveria se erguer justamente sobre o orgulho do ego coletivo de haver superado esse passado terrível (o que pode ser facilmente comprovado pelo caráter democrático da Constituição de 1946, com seus 63 artigos sobre direitos humanos), o que daria condições para que se apontassem os rumos de um futuro próspero.

 

Só assim, segundo Habermas, a Alemanha estaria totalmente segura contra um provável retrocesso nas conquistas democráticas. Somente apoiando a nova cidadania em elementos pós-convencionais (direitos fundamentais insculpidos na constituição democrática) e não no sentimento nacionalista baseados em aspectos geográficos, culturais e históricos, é que se evitaria o perigo de um novo movimento pendular da história rumo ao autoritarismo.

 

De fato, é muito mais fácil que as novas gerações, que não viveram um passado odioso já expurgado, possam inconscientemente voltar a ele, por não conhecerem a fundo as barbaridades que é capaz de gerar.

 

Por isso, não é difícil dar razão a Habermas, como, ademais, lhe deu a sociedade alemã à época do debate. E o resultado foi claramente positivo: a Alemanha voltou a pertencer ao rol dos países mais desenvolvidos, sem voltar - e sem precisar voltar, o que é mais importante - ao autoritarismo. 

 

A semelhança com a situação brasileira é bastante clara. Também nós concretizamos a superação do regime militar com a promulgação de uma Constituição fundada solidamente e princípios democráticos pós-convencionais.

 

E é precisamente essa construção teórica que se pode extrair das entrelinhas da justificativa contida no PNDH3:

 

"A investigação do passado é fundamental para a construção da cidadania. (...) A história que não é transmitida de geração a geração torna-se esquecida e silenciada. O silêncio e o esquecimento das barbáries geram graves lacunas na experiência coletiva de construção da identidade nacional. Resgatando a memória e a verdade, (...) as tentações totalitárias são neutralizadas e crescem as possibilidades de erradicação definitiva de alguns resquícios daquele período sombrio (...)O trabalho de reconstituir a memória exige revisitar o passado e compartilhar experiências de dor, violência e mortes. Somente depois de lembrá-las e fazer seu luto, será possível superar o trauma histórico e seguir adiante".

 

Inspirando-nos, assim, na bem-sucedida experiência alemã, é premente que iniciativas de confrontação do passado, tais como a instauração da Comissão da Verdade, sejam concretizadas da forma mais ampla possível. 

 

* Subprocurador-geral da OAB/RJ. Mestrando em Direito pela PUC-SP


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