06/02/2017 - 15:25

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Bagagem de peso

06/02/2017 - 15:25

Bagagem de peso

Revisão das normas da Anac acaba com a franquia de bagagens em voos nacionais e internacionais, dando às companhias aéreas liberdade de estabelecer suas próprias regras de cobrança. Para a OAB Nacional e o Senado Federal, mudança prejudica os consumidores
 
CÁSSIA BITTAR
Dezembro, época de férias, recesso e viagens. Em meio à correria de fim de ano, uma notícia que influencia diretamente a vida de quem utiliza os serviços das companhias aéreas brasileiras: a Agência Nacional de Aviação Civil (Anac) aprovara a revisão das Condições Gerais de Transporte (CGT), trazendo, a partir do próximo dia 14 de março, grandes mudanças na regulamentação do transporte aéreo brasileiro, entre elas a polêmica alteração na política de franquia de bagagens despachadas.

A proposta de acabar com a franquia obrigatória de bagagem em voos nacionais e internacionais – o que viabiliza que empresas aéreas cobrem, a seu critério, por qualquer peso de bagagem despachada – havia já, no meio de 2016, causado uma grande discussão entre setores ligados à aviação e aos direitos do consumidor, mesmo antes de a Resolução 400/2016 da Anac – que prevê as alterações – ser votada no final do ano. Para a Anac e as empresas aéreas, a mudança seria benéfica para os passageiros porque possibilitaria preços menores dos bilhetes aéreos.

A OAB Nacional, uma das principais instituições que se posicionou contra a medida, lançou, na ocasião, o site Bagagem sem preço, que convocou consumidores para um abaixo-assinado pleiteando que a resolução não fosse aprovada. Segundo o presidente da Ordem, Cláudio Lamachia, com a mudança, os passageiros teriam uma relação desvantajosa com as empresas aéreas.

Após o conselho da Anac decidir pela revisão, a agência, que por sua natureza de autarquia especial tem independência administrativa e não precisa sujeitar a aprovação das mudanças a nenhuma outra esfera, passou a sofrer ainda mais pressão pela decisão de dar às companhias autonomia para decidir sobre as bagagens despachadas.

No dia 14 de dezembro, pouco antes do recesso do Congresso, o plenário do Senado Federal aprovou o projeto de decreto legislativo do senador Humberto Costa (PT/PE) que revoga a resolução da Anac. Na volta aos trabalhos legislativos, a Câmara dos Deputados analisará a questão e decidirá se a nova regra será abolida ou não.

Além da proposta oriunda do Senado, tramitam na Câmara mais sete projetos de decreto legislativo (PDC 562/16 e apensados) que buscam sustar os artigos da resolução da Anac sobre bagagens despachadas em aviões comerciais. Como a cobrança só será admitida para voos comprados a partir de 14 de março, o deputado Celso Russomanno (PRB/SP), autor de um dos PDCs, defende a realização de uma audiência pública em fevereiro, na Comissão de Defesa do Consumidor.

A OAB Nacional, por sua vez, fortaleceu a reação à decisão final da Anac impetrando uma ação civil pública que contesta os artigos 13, 14 e 15 da Resolução 400/2016 da agência, sobre a polêmica questão. Segundo a Ordem, a resolução transfere para o consumidor a responsabilidade e os custos operacionais do serviço de despacho de bagagem, operação que, na visão da instituição, é inerente ao transporte de passageiros de acordo com o artigo 734 do Código Civil. A OAB alega que a resolução também não exige contrapartida do transportador, por não incluir nenhum “regulamento, portaria ou lei para normatizar tais valores cobrados, o que deixaria o consumidor sem proteção quanto ao preço a ser cobrado por estes serviços”.

Atualmente, as empresas aéreas devem obedecer a normas que estabelecem a franquia mínima de 23 kg para viagens domésticas e duas malas de 32 kg para viagens internacionais, valores que, segundo a Anac, não seguem o padrão internacional atual.

“Em relação ao mercado internacional, apurou-se, em pesquisa junto ao Ministério das Relações Exteriores (MRE), que poucos países do mundo têm ingerência estatal sobre transporte de bagagem. São eles: o México (franquia de 25 kg), a Rússia (10 kg) e a China (20 kg), todos em voos domésticos. Nações de grande extensão territorial, como África do Sul, Argentina, Austrália, Canadá, Colômbia, Estados Unidos e Índia, bem como todos os da União Europeia ou países com território fragmentado, no qual o transporte aéreo é um importante meio de deslocamento, como as Filipinas, não têm regulação estatal para a franquia”, afirma o gerente de relações de consumo da Anac, Fernando Feitosa.

A Associação Brasileira das Empresas Aéreas (Abear), que representa Avianca, Azul, Gol e Latam, e  desde o início da polêmica se posicionou de forma favorável à mudança, criticou a reação do Senado que, segundo a associação, veio na “contramão” do que é praticado em quase todos as nações.

“Importante deixar claro que hoje a bagagem não é gratuita. É um erro imaginar que ninguém paga por ela. O que chamamos de franquia contribui para a tarifa, para o preço que o consumidor paga na passagem. Além disso, 60% dos passageiros que viajam hoje em voos domésticos, por exemplo, não despacham bagagem”, observa o consultor técnico da Abear, Marcos Diegues.

Integrante da Comissão de Direito do Consumidor da OAB/RJ, Eduardo Biondi considera um “factoide” a alegação da Anac de que a mudança na política de bagagens possibilitaria passagens mais baratas e o aparecimento de empresas low cost, a exemplo das companhias europeias famosas pelo baixo custo: “Em uma primeira análise, não há garantia de que haverá uma redução de preços, até porque até hoje não havia nenhuma descrição, no momento da compra da passagem, do custo da taxa de bagagem. Está embutido, mas não sabemos quanto pagamos por elas. Então pode, sim, haver aumento abusivo. Cada empresa poderá cobrar a seu livre entender ou até mudar toda hora sua política e valores, confundindo o consumidor”, argumenta.
Biondi acrescenta que as empresas low cost estrangeiras são caracterizadas, principalmente, pelo barateamento na prestação de serviços: “O que faz o low cost não é ter franquia de bagagem ou não. São os aviões utilizados, os aeroportos secundários, todos os custos no contexto do serviço, digamos, de segunda linha”.

Segundo ele, a pretensão da Anac de “se espelhar em países de primeiro mundo” acaba não se adequando à legislação. “Naqueles em que há desregulamentação do mercado não há, também, legislação de direito do consumidor no modelo daqui. Nos Estados Unidos, por exemplo, a questão do direito do consumidor é muito mais cultural do que legal”, explica.

Feitosa, da Anac, explica que o processo de revisão das condições gerais de transporte foi iniciado em 2014, com a realização de audiências públicas e espaços de diálogo com outros órgãos, a fim de uma construção em conjunto das novas regras. “Empresas aéreas, entidades de proteção ao consumidor e sociedade civil foram conclamadas a aportar contribuições na discussão do tema. Entidades externas também encaminharam subsídios para a elaboração da norma, dentre elas o Procon/DF, o Ministério Público Federal e o Idec, entre outros. Foram recebidas 67 contribuições que serviram de base à primeira proposta de codificação de toda a legislação relativa às condições gerais de transporte, fundamentada ainda em dados estatísticos técnicos e econômicos e na avaliação da legislação nacional atual em cotejo com normas estrangeiras”.

O clima entre os passageiros, porém, ainda é de apreensão. Os depoimentos colhidos pela TRIBUNA entre pessoas que chegavam e saíam do aeroporto Santos Dumont no dia 13 de janeiro revelam uma maioria que teme o aumento dos gastos para viajar e torce pelo veto à resolução da Anac.

“A partir do momento em que a Anac deixa as companhias livres, a gente fica na mão delas. Vão colocar o preço que quiserem. Não concordo com isso. Acho que tem regra, sim, ou tudo o que for decidido será em benefício das empresas. Nossa única esperança será o processo de concorrência mesmo, só isso poderá baratear”, observou o vendedor Valter Cintra, que voltava de Uberlândia com sua família.

A administradora Raquel Valadares ponderou que, apesar de ser uma tendência mundial, o fim da franquia não é  adaptável ao Brasil no momento: “A Europa, por exemplo, é pequena, as pessoas viajam e não precisam de muitas malas. No Brasil, a gente faz um deslocamento muito grande, a diferença de temperatura é enorme, precisamos realmente ter mais espaço”.

Marcos Diegues afirma que não poderia haver, na resolução, garantia em relação ao abuso do preço das passagens, pois “não há lei que obrigue uma empresa no mercado de livre iniciativa a reduzir preço”. O consultor compara a medida à forma como funciona atualmente o serviço de alimentação a bordo: “Acreditamos que haverá redução por uma questão de histórico do setor, da concorrência que trará. E é importante frisar que não haverá cobrança automática pelas malas. As empresas apenas terão essa prerrogativa, assim como têm com a alimentação. Não há regulamentação para esse serviço e –, nas quatro companhias brasileiras, cada uma age de forma livre”.

Diegues atenta também para o fato de que a nova norma da Anac, por acabar com a franquia, aumenta, em compensação, os limites para a bagagem de mão: “Se a resolução entrar em vigor sem ser vetada em nenhum ponto, teremos o dobro do que é permitido hoje como bagagem de mão, 10kg, que não é pouca coisa”.

Para o Ordem, nem a alteração no peso da bagagem de mão e nem mesmo outra mudança importante trazida pela Resolução 400/2016 – a descrição, em qualquer compra realizada a partir de 14 de março, de todas as taxas incluídas no preço da passagem – alteram o impacto que o setor sofrerá com a mudança: “De nada adiantará o incentivo à concorrência se os preços na base forem muito elevados, o que ninguém poderá garantir, pois a resolução concede liberdade tarifária às transportadoras. Assim, além de colocar o consumidor em manifesta desvantagem, está deixando-o desprotegido, pois não haverá nenhuma regulamentação acerca das franquias de bagagem. Assim, consequentemente, as empresas de serviços aéreos terão liberdade para impor qualquer serviço a qualquer preço aos consumidores, e como não haverá nenhuma margem de preço ficará difícil até mesmo fiscalização. Essa alteração significaria um retrocesso quanto aos direitos dos passageiros, pois no cenário em que o Brasil se encontra seria quase que impossível diminuir os valores dos bilhetes, e mesmo que isso ocorresse o preço estabelecido nos serviços para o transporte das bagagens seria muito elevado. Assim, será muito provável uma superação de preço”, aponta a ação.

A OAB ressalta ainda que a mudança poderá submeter o consumidor à prática de venda casada: “A extinção da franquia mínima de bagagem de porão irá forçar o consumidor a contratar um segundo serviço, necessariamente com o mesmo transportador, com o fito de despachar a bagagem que exceda o volume único de 10 kg de peso bruto, situação que viola o direito básico à liberdade de escolha previsto no art. 6º, II, do Código de Direito do Consumidor, e que resvala no proibitivo contido no art. 39, I7 , do mesmo diploma legal, o qual veda a nefasta prática comercial denominada ´venda casada’”.

A resolução trouxe também mudanças consideradas necessárias para o setor e que não entraram na polêmica. Entre elas, o aumento no valor da indenização por extravio de bagagem; a possibilidade de alterar informações do passageiro sem custo; a possibilidade de desistência da compra feita por qualquer meio 24 horas depois do recebimento do comprovante da passagem, desde que a compra tenha ocorrido com antecedência de sete ou mais dias em relação à data do embarque; o fim do cancelamento automático dos demais trechos quando o passageiro não comparece ao primeiro (no show), desde que comunique a ausência; e o fim da responsabilização da companhia por casos de cancelamento ou adiamento dos voos por força maior imprevisível, como mau tempo que leve ao fechamento do aeroporto, ou por um atentado terrorista.

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