06/02/2017 - 15:23

COMPARTILHE

Fora do Estado de Direito não há saídas

06/02/2017 - 15:23

Fora do Estado de Direito não há saídas

ALBA ZALUAR*

Há muitas maneiras de entender o sistema de justiça no Brasil que envolve as polícias, o Judiciário e o sistema penal. Análises estatísticas demonstram o quanto este se deteriorou e podem indicar seus gargalos e defeitos.

O que se destaca nas estatísticas sobre condenações com pena de privação de liberdade? Um crescimento de 349% naquelas relacionadas com o tráfico de drogas: de 14%, em 2005, para 28%, em 2014. Dos condenados por flagrante de tráfico em São Paulo, 62% eram pessoas presas com menos de 100 gramas de droga, sendo 80,6% réus primários (Núcleo de Estudos da Violência/USP). No Rio de Janeiro, entre acusados de tráfico, 80,6% eram réus primários e 92,5% não portavam armas no flagrante (Centro de Estudos de Segurança e Cidadania/Universidade Cândido Mendes). Portanto, a maior parte dos hóspedes dos presídios nesses dois estados, provavelmente em todo o Brasil, é constituído de pessoas, na maioria jovens moradores de favelas e periferias, flagrados na zona cinzenta entre o tráfico e o uso. Cada um desses casos mereceria investigação pormenorizada para que a sentença não se baseasse apenas na palavra do policial que fez o flagrante, fonte da extensa corrupção que corre entre a polícia ostensiva e os jovens moradores da cidade. No Rio de Janeiro, uma cláusula foi acrescentada na lei penal para garantir que o depoimento do policial seja levado sempre em conta.
 
Some-se a isso o fato de que 90% das prisões feitas são resultado de flagrantes registrados por policiais e os presos permanecem na cadeia até o julgamento, que pode demorar meses.

Mas os números não falam por si. É preciso interpretá-los e é fundamental entender os contextos sociais que vão criar esses números. Um exemplo disso é a recente criação das audiências de custódia implantadas no Brasil para diminuir o número de pessoas provisoriamente mantidas em presídios. Só que, na maioria dos casos, elas continuam presas até o julgamento, mesmo com crimes menores e sem provas irrefutáveis de autoria.
 
Importa mais se a pessoa tem endereço correto como nome de rua e número da casa, ou seja, fora de favelas, e um emprego formal. Favelados biscateiros ou com negócio informal não escapam da decisão do juiz que preside a audiência para que permaneçam presos. Quanto a isso, pouco podem fazer seus defensores ou advogados. Terminam sempre em superpopulosos presídios, casas de custódia, cadeias públicas. 

Nestes, as celas são coletivas, alojando 30 ou 40 homens permanentemente trancados, com banho de sol uma vez por semana, se tanto. Segundo os presos, ali “é um estresse total”, é “onde surgem muitas brigas em que um dá facada no outro”. A penitenciária, entendida por eles como o que está definido na Lei Penal – uma cela para cada preso, com banheiro, água corrente, chuveiro etc. –, é vista como um “direito” de quem recebe pena longa e pode viver em cela individual. Na visão de um ex-detento, “se ele quiser, passa o dia todo sem olhar para a cara de ninguém”, mas onde “a gente come, dorme, toma banho, tem chuveiro com água quente e caixa d’água” e “pode receber visitas durante o dia”. Nos presídios, compra-se de tudo, inclusive a mudança de cela e de presídio, mas na penitenciária os presos podem até mesmo remodelar o espaço com tijolo e cimento: “Vende caixa d’água, chuveiro, cama, colchão. O cara chega na penitenciária e ouve: o seu cubículo é tal... quando chega no lugar, não tem porta, não tem parede, está tudo quebrado! Então um cara diz: Fulano tá querendo vender o cubículo dele. Lá, tudo é vendido.” Quem é o dono da cantina, ninguém sabe, ninguém viu. Mas parece ser um grande negócio que cria desigualdade, estratificação, estruturas de poder e uma economia informal que conforma a sociedade dos cativos.

Outra peculiaridade do sistema prisional brasileiro é a importância que nele adquiriram as facções desde o final dos anos 1970. Por causa da lealdade cada vez mais indispensável, a figura mais odiada no mundo do crime é o traidor ou alcaguete, que fala na delegacia sobre os comparsas, que denuncia o funcionamento da boca para policiais ou inimigos da outra facção. Em geral, abrem a boca os novatos, sem experiência e compromisso, considerados indecisos ou “vacilões” pelos comparsas “formados”. Tais valores morais, derivados da lealdade exigida em qualquer organização criminosa, demonstram que há um aprendizado para o crime e para entrar na organização e ser por ela “protegido”, uma confiança cercada de desconfianças, num pertencimento frágil que deve ser avaliado a cada passo. Os que mais morrem dentro e fora da cadeia são os que fracassam na inclusão da lealdade e confiança, sempre reversíveis.

Dentro da prisão há igualmente acusações que justificam assassinatos. Uma quase automática e naturalizada justificativa se repete a cada assassinato: não se sabe quem matou! Há sempre muitos presos que não têm esperança de ganhar liberdade porque recebem penas pesadas, não têm família, não têm ninguém para ampará-los, portanto dependem dos chefes de cadeia para ganhar alguma coisa. São chamados de robô, ou seja, quem vai à delegacia para assinar o crime; nem sempre quem matou de fato a mando de alguém que nunca aparece. O morto não tem como se defender e é usado junto aos demais presos para justificar o assassinato: era X-9, traiu a facção, deu uma volta em alguém, paquerou a mulher do outro, mas na verdade mata-se por qualquer motivo, por desconfiança ou inveja.

As transações entre traficantes de maior peso e policiais estão costumeiramente baseadas na mentira, até mesmo para evitar a identificação do recolhido. Negar até o fim, de modo a não cumprir mandados de prisão já expedidos, ou ser preso por algum ilícito penal. Ser trabalhador é sempre a resposta dada para a atividade atual.
 
Mas é também um modo de prevenir propinas muito altas quando o preso vem a ser conhecido como comerciante bem-sucedido. Um dos maiores sorvedouros do dinheiro ganho pelos traficantes era, e talvez ainda seja, a propina paga a policiais, para continuar ganhando dinheiro no negócio e continuar pagando o arrego. Depois de presos, tudo continua sendo negociado: as visitas, os privilégios, a própria permanência em cadeias consideradas melhores. 

Por isso, quando se ouve os que vivem o inferno da criminalidade urbana no Brasil, entende-se que, para além das estatísticas, parece haver um encadeamento interminável de imprevistos e jogos que dependem de muitos parceiros, intermediários e adversários para evitar a prisão ou para permanecer vivo dentro dela. As narrativas são infindáveis e as negociações, imprevisíveis, com traficantes passando a maior parte do seu tempo negociando e pagando caro pela liberdade deles mesmos e de seus parceiros. Claro que isso não ajuda a construir o respeito e a confiança nas instituições e nos agentes defensores da lei. Claro que esse encadeamento é o que os prende cada vez mais às regras de reciprocidade negativa, mas, apesar disso, a única possibilidade de alguma proteção quando forem apanhados pelos agentes da lei e enviados para um presídio.
 
Enquanto os atores institucionais nesses encontros não respeitarem o Estado de Direito, não haverá outra saída. Todos os meios possíveis serão empregados dando a volta na lei. A cobra morde o próprio rabo.
 
*Antropóloga, professora titular da Uerj, coordenadora do Núcleo de Pesquisa de Violências (Nupevi)

Abrir WhatsApp