06/02/2017 - 15:28

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Igualar idade para aposentadoria de homens e mulheres é justo?

06/02/2017 - 15:28

Igualar idade para aposentadoria de homens e mulheres é justo?

Remédio errado para diagnóstico certo

PEDRO FERNANDO NERY*
Em 2006, a produtora rural Blanka Soukupová pediu sua aposentadoria. Negada pela República Tcheca, a saga da Sra. Soukupová teve fim sete anos depois. O Tribunal de Justiça da União Europeia decidiu em seu desfavor, entendendo que regras de aposentadoria diferentes para homens e mulheres são “discriminatórias” e ofendem o Tratado de Funcionamento da UE em relação a tratamento igualitário para salários entre os gêneros.

Para o Brasil, a decisão parece absurda. Se faz sentido igualar a idade mínima de homens e mulheres na Europa, onde a sociedade já evoluiu na questão de gênero, não se poderia dizer isso do Brasil, um país de cultura machista, que começou 2017 com a chacina de Campinas e que trata as mulheres de maneira desigual no mercado de trabalho.

Convergir as regras de aposentadoria entre os sexos, porém, não significa negar ou menosprezar questões como a dupla/tripla jornada, mas apenas reconhecer que esta é uma política compensatória cara, mal focalizada e sem resultados. 

Esperada também para a reforma de Dilma Rousseff, a mudança de regras visa atenuar o desequilíbrio financeiro e atuarial das previdências. Mesmo com requisitos iguais para homens e mulheres, elas ainda receberão mais, por ser sua a expectativa de sobrevida maior. Elas são também 90% das beneficiárias da pensão por morte.

No caso da aposentadoria por tempo de contribuição, as mulheres hoje se aposentam em média aos 52 anos, tendo contribuído por 30. A expectativa de vida nesta idade é de 82 anos (30 de usufruto). Fica claro que 30 anos contribuindo com 31% do salário não é proporcional a 30 anos recebendo um benefício de 100%.
 
Além de ser uma política compensatória cara, é mal focalizada. Beneficia as mulheres com maior inserção no mercado de trabalho, que tendem a ser das camadas mais ricas e, ironicamente, as menos penalizadas pela tripla jornada.

Ana, uma executiva solteira e sem filhos, se aposenta antes, mas como Maria, uma mãe pobre com cinco filhos, pode conseguir décadas de trabalho formal? Ela fica excluída do benefício e, se for pobre o suficiente, pode apenas requisitar um benefício assistencial aos 65 anos (sem diferença entre os sexos).

O tratamento especial para as mulheres se manteve igual no período em que o país viveu uma epidemia de baixa fecundidade: a taxa caiu de 4,1 filhos por mulher em 1980 para 1,7 em 2015. Não ficamos menos machistas por manter a regra, um remédio caro para o diagnóstico certo.

Tratamentos especiais devem focar nas mulheres que de fato se sujeitam à dupla ou tripla jornada, sob pena de Maria continuar subsidiando Ana. Propostas baseadas na experiência internacional sugerem abater da idade mínima o número de filhos o ou período de afastamento cuidando deles, e até permitir o compartilhamento do tempo de contribuição do pai.

O Brasil se reencontra com seus fracassos na reforma da Previdência. Não resolvemos o problema da educação ou da segurança concedendo aposentadorias especiais, e o machismo persiste apesar do bilionário tratamento diferenciado. Uma idade mínima igual para homens e mulheres não pode significar aceitar que não existe tripla jornada ou discriminação no mercado de trabalho, mas deve sim trazer à mesa políticas mais adequadas para essas questões. Entre elas, as que viabilizem o direito à creche, a ficção inscrita no art. 208, IV, da nossa Carta Cidadã. 
 
*Doutorando e mestre em Economia (UnB), consultor legislativo do Senado (a opinião não reflete posição de seu empregador ou de outrem)

Proposta ignora realidade do cotidiano feminino

HILDETE PEREIRA DE MELO*
A Previdência Social nada mais é do que um espelho da vida ativa das pessoas. No entanto, a proposta do governo para a sua reforma ignora a dura realidade da vida cotidiana feminina: o trabalho invisível realizado no interior de suas casas, cuidando dos filhos e maridos, atividades que realizamos por “amor” a nossas famílias. Estamos cansadas de ter a igualdade na lei, mas não na vida. E a única vantagem feminina deve ser suprimida pelo pretexto da nossa maior longevidade?

O mercado de trabalho continua desigual para as mulheres: aquelas que trabalham fora de casa recebem 30% menos para ocupações similares às exercidas pelos homens; temos as maiores taxas de desemprego; somos minorias nos cargos de chefia e direção, e finalmente assumimos as atividades do mercado de trabalho sem renunciar aos afazeres domésticos.

Joga-se debaixo do tapete o trabalho doméstico não remunerado que milhões de mulheres executam para a reprodução da vida. Todas, negras e brancas, acumulam a dupla jornada de trabalho: tanto no mercado de trabalho como na família, embora a jornada seja mais intensa para as negras. No Brasil, comparando os anos de 2004 e 2015, temos que a jornada masculina total (trabalho principal e afazeres domésticos) foi de 53,1 horas semanais (2004) e reduziu-se para 50,5 horas semanais (2015). As mulheres declararam, somando (trabalho principal e afazeres), 57,2 horas (2004) e 55,1 horas (2015): cinco horas a mais por semana. Só com afazeres domésticos, foram 20,5 horas para elas e 10 horas para eles. Triste sina! Ganhar menos no mercado de trabalho e acumular praticamente outra jornada cuidando da família. E não ter o pequeno privilégio de se aposentar mais cedo. 

Como foi introduzida esta mudança? Há 50 anos foi outorgada a Constituição Federal de 1967 (24/01/1967). Esta Carta introduziu a diferenciação para o tempo de trabalho entre os dois sexos: até então, mulheres e homens eram iguais na definição do tempo para requerer a aposentadoria. Não houve mudanças no marco regulatório da Previdência Social, apenas introduziu-se a diferença de tempo de trabalho entre os sexos. Seu texto afirma, no Art. 158, inciso XX: “aposentadoria para a mulher, aos trinta anos de trabalho, com salário integral”. Não havia uma proposta política do movimento de mulheres, ou de partidos políticos com esta demanda. Infelizmente, não foi possível esclarecer as origens do estabelecimento da diferenciação. Talvez tenha havido um pedido especial dos militares para essa redação? Não sabemos.

A proposta de reforma previdenciária justifica a igualdade entre os sexos afirmando que vivemos mais e que muitos países já igualaram o tempo requerido para aposentadorias. Parece desconhecer que aqueles que adotam o critério da equidade de aposentadorias têm políticas ativas de igualdade de gênero para compensar as diferenças entre os rendimentos por sexo. Nestes países, a paridade não foi construída no abstrato.

Infelizmente o Brasil ainda está longe da tão sonhada igualdade entre mulheres e homens, e em todas as nações as jornadas do trabalho pago feminino são menores que as masculinas, enquanto o tempo de trabalho não pago delas é superior ao deles. A luta feminista pela igualdade é uma realidade global, com condições melhores e piores em cada lugar.
 
*Doutora em Economia (UFRJ), coordenadora do Núcleo Transdisciplinar de Estudos de Gênero da UFF, editora da Revista Gênero/UFF

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