06/02/2017 - 15:31

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Motoristas podem dirigir e dar troco?

06/02/2017 - 15:31

Motoristas podem dirigir e dar troco?

Especialistas apontam riscos da dupla funçã o nos ônibus e cobram soluções do governo

RENATA LOBACK
Tal qual a educação, a saúde, o trabalho e a moradia, o transporte vigora como um direito social desde setembro de 2015, por meio da Emenda Constitucional 90 (EC 90/2015), que alterou o artigo 6º da nossa Constituição. A medida foi uma tentativa, até agora frustrada, de frear os protestos relacionados ao transporte público, gerados, principalmente, pela insatisfação com a falta de estrutura, o alto valor das passagens e a carência de ar-condicionado em boa parte da frota de ônibus. Pautas que, mesmo após a EC 90/2015, voltam a ser debatidas a cada início de ano, época de calor intenso que coincide com o período de reajuste das tarifas. Soma-se a essas questões uma grande insatisfação da população com a tendência adotada pelas empresas de ônibus: o emprego dos motoristas também na função de cobrança das passagens.

Mais do que aumento no tempo de viagem e a insegurança quanto à atenção dos condutores, o acúmulo de funções é visto com maus olhos pelos especialistas na área do Direito do Trabalho. Segundo a presidente da Comissão de Direito Sindical da OAB/RJ, Rita Cortez, para os trabalhadores de forma geral é muito claro não ser possível acumular outra função sem a devida compensação salarial. No entanto, assim como os advogados, que são guiados por uma legislação própria – o Estatuto da Advocacia –, os motoristas também são considerados sindicalmente uma categoria diferente. “Os acordos são estabelecidos entre sindicatos e empresas. E alguns grupos acabaram cedendo a esta prática numa tentativa de garantir melhores reajustes”, comenta Rita.

Amplamente utilizada em todo o país, a dupla função ainda não tem respaldo legal e a falta de norma específica provoca diferentes entendimentos por parte do Judiciário. Apesar de a Federação das Empresas de Transportes de Passageiros do Estado do Rio de Janeiro (Fetranspor) afirmar que o Tribunal Superior do Trabalho (TST) já pacificou a questão, especialistas demonstram que ainda há decisões que fogem a tal direcionamento. “O próprio TST já condenou empresas neste sentido”, destaca o procurador do Ministério Público do Trabalho do Estado do Rio de Janeiro (MPT-RJ) João Carlos Teixeira.

De acordo com ele, a jurisprudência não é unânime. “Há decisões tanto no TST quanto nos tribunais que, com base no artigo 456 da Consolidação das Leis do Trabalho [que permite ao empregador exigir dos funcionários atividades compatíveis à sua condição pessoal], admitem o acúmulo sem reposição salarial. Mas também há julgadores afirmando que as duas funções são absolutamente distintas e geram sobrecarga, superexploração, desemprego dos trocadores e risco aos passageiros. Mesmo entendimento do MPT-RJ, que condena a prática”, pondera o procurador.

Para Rita Cortez, o acúmulo não é cabível: “Apesar de ser permitido tratar a questão como uma novação contratual – quando uma obrigação prevista é acrescida de outra sem que isto esteja no contrato de trabalho –, não vejo como uma prática aceitável neste caso específico. Esta é uma categoria historicamente explorada, com uma jornada de trabalho exaustiva e função estressante. Há muita responsabilidade na condução de passageiros. Dirigir e pensar em troco pode gerar desatenção no trânsito, além de exigir deste profissional um trabalho excessivo e responsabilidade muito maior”.

Desgastante e estressante. Assim resume o motorista e diretor de base do Sindicato dos Motoristas e Cobradores de Ônibus da Cidade do Rio de Janeiro (Sintraturb-RJ), Sérgio Adriano Pereira Martins, ao avaliar a dupla função.  “Por mais que cada tarefa deva ser exercida separadamente, quando estamos dirigindo estamos preocupados se fizemos a conta certa e se o troco está acabando. Sem falar na apreensão com o trânsito em si. Há uma questão de segurança com essa divisão de atenção, gerada pelo nosso desgaste físico e emocional”, pondera.

Na visão do Ministério Público do Trabalho, essa acúmulo de funções é muito prejudicial ao trabalhador.  “Apenas a direção já é extremamente fatigante, o que se agrava quando acumulada com a atenção do motorista à cobrança da passagem. São muitas pressões juntas: a dos passageiros, que querem o ônibus saindo rapidamente dos pontos de parada; a dos guardas municipais, que exigem a fluência no trânsito; a da matemática do troco; e a do horário estabelecido pelas empresas. É tanta pressão que para seguir viagem, inevitavelmente, os motoristas dirigem dando troco. Sabemos que não é o recomendado pelas empresas, mas qualquer pessoa que anda de ônibus já observou esta situação”, pontua o procurador.  

Segundo a Fetranspor, a orientação aos motoristas é clara: só devem iniciar a viagem após a cobrança da passagem, de forma a preservar a segurança dos usuários. “Todos os profissionais passam por treinamento e são fiscalizados diariamente pelas empresas, inclusive com o auxílio dos próprios passageiros. As atividades de cobrador são realizadas em conformidade com a legislação de trânsito, não havendo qualquer incompatibilidade. Todo comportamento irregular é punido como previsto em lei e não há imposições para que tal procedimento não seja seguido, muito menos sobre tempo de viagem”, destaca, em e-mail, a Assessoria de Imprensa da Federação.

Culpar unicamente o motorista quando há infrações é outro ponto criticado pelo procurador do Trabalho: “É muito fácil para as empresas falarem que a culpa é do motorista e desconsiderarem as cobranças impostas a eles. Mas essas cobranças existem e geram muito estresse à categoria. Não são raros os casos de funcionários que desenvolvem síndrome do pânico. Sempre que intervimos em um processo, alertamos sobre os riscos deste tipo de acumulação”.

Como agravante, o procurador João Carlos Teixeira cita a forma como é feita a prestação de contas do dinheiro arrecadado nas passagens. Segundo ele, ao encerrar o turno como motorista é preciso ir à garagem e aguardar o procedimento, repondo diferenças com o próprio salário. Tal tarefa muitas vezes não é mais computada como jornada de trabalho, apesar de eles ainda estarem a serviço da empresa. “O entendimento do TST, quando admite a acumulação, é que as atividades são compatíveis desde que exercidas dentro da mesma jornada de trabalho. Na prática não é o que acontece”, pondera.

Para a Federação das Empresas, o acúmulo de funções é totalmente compatível com a condição pessoal do motorista e não há qualquer prática contrariando esse conceito. “Vale ressaltar, ainda, que o sistema de bilhetagem eletrônica é uma tendência no transporte público, e no Rio mais de 70% das transações são feitas com cartões RioCard”, acrescenta a Fetranspor.

Apesar de admitir o grande número de passagens pagas por meio eletrônico, o vice-presidente do Sintraturb-RJ, José Carlos Sacramento, afirma que ainda é grande o número de passageiros que usam dinheiro. “Enquanto a bilhetagem eletrônica não for total, pedimos o fim da dupla função, sem exceções”, salienta.

É atribuída à implantação do bilhete eletrônico a criação da dupla função e a consequente extinção dos postos de trabalho dos cobradores. Para os especialistas, um processo que não tem volta. “São os ônus da modernidade, que em diferentes categorias substitui a mão de obra humana pelo uso da tecnologia”, observa Rita Cortez.

Em que pese o fim da função de trocador, problema que deve ser repensado de forma conjunta pelos sindicatos, empresas e governo, o ideal para o problema da dupla função, afirma o procurador do Trabalho, seria a adoção de procedimento similar ao que já é feito em países vizinhos, onde só é possível ingressar no ônibus por meio de bilhete eletrônico. “Desta forma, o motorista fica dispensado da obrigação de lidar com o troco e pode concentrar toda a sua atenção na condução dos passageiros”, diz.

Segundo a Fetranspor, não compete às empresas tal mudança: “As concessionárias e permissionárias de transporte coletivo de passageiros do Estado do Rio de Janeiro seguem as normas estabelecidas pelas autoridades competentes e pautam suas diretrizes internas de forma a preservar pela segurança dos passageiros e de seus empregados. Qualquer prática contrária deve ser combatida pelas autoridades fiscalizadoras competentes”.

Pelo caráter social atribuído ao transporte, o envolvimento dos governos com o tema não deveria ficar restrito à fixação de valores, reclama a presidente da Comissão de Direito Sindical da Seccional. “Fiscalizar em que condições este serviço é prestado e pensar em soluções são, também, funções do governo. No entanto, as respostas não aparecem”, lamenta Rita Cortez.

 A demora na aprovação de projetos de lei que tramitam sobre o assunto é apontada por ela como o retrato do descaso. “Há um projeto de lei na Câmara dos Deputados desde 2003 (2.163/2003-A) e outros na Alerj [Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro] desde 2007 que versam sobre a incompatibilidade de se permitir esta acumulação de funções. Até hoje não há uma definição e vemos a população sendo exposta a riscos”, critica.

O Ministério Público do Trabalho do Rio de Janeiro também acredita numa solução pensada em conjunto com o governo. “Estou responsável pela elaboração de um inquérito que lista todos os prejuízos desta prática. O documento será apresentado às novas administrações municipais em ocasião próxima. A nossa proposta é que o motorista não manuseie dinheiro e nem dê troco, como já ocorre em outras partes do mundo. É fundamental que este encontro conte com a participação de todos os envolvidos, ou seja, os sindicatos dos trabalhadores e as empresas”, adianta o procurador.

Segundo o vice-presidente do Sintraturb-RJ, uma das propostas do sindicato para recompensar a extinção dos cobradores é a realocação desses funcionários em outras áreas. “Em vez de as empresas contratarem novos empregados, nossa ideia é que os profissionais sejam redistribuídos para outras funções, como despachantes, fiscais e bilheteiros”, aponta Sacramento.

De acordo com a Federação, as empresas do setor de transporte coletivo de passageiros já mantêm constante diálogo com os sindicatos buscando atender às necessidades dos trabalhadores. Há milhares de casos de cobradores que foram aproveitados em outras funções, inclusive de motorista. “Considerando que as empresas do setor de transporte coletivo de passageiros são sensíveis por sua função social, principalmente no que se refere à necessidade de se buscar readaptação e recapacitação que permita aos cobradores uma mudança de função ou de profissão no setor, buscamos, em conjunto com os sindicatos, parcerias com entidades setoriais para a realização dessas ações”, conclui a Fetranspor.

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