06/02/2017 - 15:19

COMPARTILHE

Prisão provisória, injustiça permanente

06/02/2017 - 15:19

Prisão provisória, injustiça permanente

Mais de 40% dos encarcerados no Rio de Janeiro e no Brasil são presos provisórios, o que aumenta a superlotação, gera prejuízos para o Estado e promove injustiças em um sistema carcerário caótico
 
VITOR FRAGA
O início de 2017 pôs na ordem do dia o debate sobre a crise aguda do sistema penitenciário. O grau de violência das rebeliões ocorridas em presídios no Amazonas, em Roraima e no Rio Grande do Norte, que deixaram mais de 100 mortos, foi sem dúvida o aspecto mais destacado por diversos veículos de comunicação. Mas basta um olhar mais atento para perceber as origens da revolta, e também da intensidade da verdadeira barbárie que predomina nas cadeias brasileiras. A superlotação agrava as dificuldades – e, para piorar, o país, que já tem a quarta maior população carcerária do mundo, põe cada vez mais gente na prisão. Audiências de custódia, medidas cautelares e penas alternativas não são suficientes para alterar o quadro.

No Rio de Janeiro, 42% dos presos são provisórios (ou seja, ainda não foram julgados na primeira instância), segundo pesquisa divulgada no final de 2016. Os dados apontam que mais da metade acaba inocentada, tem os processos extintos ou é condenada a penas diferentes da privação de liberdade. Em outras palavras, não deveriam ter ficado presos. Considerando apenas o regime fechado (descontando o semiaberto e o aberto), existem mais presos provisórios, ainda sem julgamento, do que condenados no estado. A TRIBUNA ouviu juristas e pesquisadores, que foram unânimes em criticar a lógica de um sistema que prende majoritariamente jovens negros e pardos, pobres, com baixa escolaridade – e, em muitos casos, injustamente.

Segundo dados do Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (Infopen/2014), realizado pelo Departamento Penitenciário Nacional (Depen) do Ministério da Justiça (MJ), a população carcerária brasileira é de 622.202 pessoas, sendo a quarta maior do mundo, atrás de Estados Unidos (2.228.424), China (1.657.812) e Rússia (673.818). Ao contrário dos demais países, a tendência é de alta: entre 2008 e 2013, enquanto os EUA reduziram a taxa de encarceramento em 8%, a China em 9% e a Rússia em 20%, o Brasil aumentou em 33%. A média nacional de presos provisórios é de 40,1%, quase 250 mil homens e mulheres. Dados do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) indicaram, em 2015, que 17,2% dos casos terminam com a absolvição. Se incluídos aqueles em que o processo é extinto ou a pena aplicada é uma alternativa à privação da liberdade, esse total sobe para 54,4%. Isso equivale a dizer que mais da metade das pessoas que estão privadas de sua liberdade hoje no país não deveria estar atrás das grades. A situação das mulheres é ainda mais grave: no período de 2000 a 2014, a população carcerária feminina no Brasil aumentou 567,4%, contra 220,2% da masculina.

Dados mais recentes e que confirmam a manutenção desse cenário foram divulgados, em dezembro de 2016, pela pesquisa Imparcialidade ou cegueira: Um ensaio sobre prisões provisórias e alternativas penais, coordenada pelo Instituto de Estudos da Religião (Iser) e realizada em parceria com o Centro de Estudos de Segurança e Cidadania da Cândido Mendes (Cesec). Foi analisado o encarceramento excessivo de presos sem julgamento no Estado do Rio de Janeiro, prática apontada como desumana, além de custosa para o estado. Segundo o estudo, em julho do ano passado a Secretaria de Administração Penitenciária do Rio de Janeiro (Seap) registrava 48.262 pessoas presas (com um custo de R$ 38 milhões ao mês), sendo 46.070 homens e 2.192 mulheres, para uma capacidade de 27.242 vagas. Desse total, 20.631 eram provisórios, ou seja, 42,74%. Havia ainda 16.814 (34,84%) em regime fechado, 10.320 (21,39%) no semiaberto e 492 (1,03%) no aberto. Ou seja, nas cadeias fluminenses os encarcerados sem julgamento representam mais da metade do contingente.

O estudo do Iser partiu “da fala das pessoas, suas histórias de vida, para fazer uma avaliação qualitativa em relação aos processos pelos quais elas passam, não apenas juridicamente, mas as consequências para si e suas famílias”, revela a coordenadora da pesquisa, a psicóloga Paula Jardim. A ideia era mostrar o impacto do encarceramento na vida dessas pessoas. “O que ficou comprovado é que a prisão provisória, que deveria ser exceção, virou regra. E continua sendo mantida, apesar de fatores como as medidas cautelares e as audiências de custódia. O Rio de Janeiro é o quinto estado que menos libera presos nessas audiências”, acrescenta. Em 2015, teve início o processo de implementação, com prazo de 24 horas para que o juiz avalie a legalidade da prisão em flagrante e a necessidade ou não de o acusado permanecer no cárcere. Em setembro daquele ano, a medida começou a ser aplicada no Rio, e desde então foram realizadas mais de seis mil audiências de custódia. Os dados obtidos pelo Iser indicam que, enquanto a média brasileira chega a 50% de solturas após sua realização, no Rio de Janeiro esse índice é de 35,5% – ou seja, em 64,5% das vezes o resultado é a prisão preventiva (a média nacional é de 46%).

Outro ponto da pesquisa diz respeito às alternativas penais. “A aplicação pelo Judiciário ainda é muito tímida. Não conseguimos números oficiais sobre isso, porque a Justiça não liberou os dados. Sabemos, no entanto, por outras pesquisas, que mais de 20% dos presos poderiam estar cumprindo algum tipo de pena alternativa. Ainda é um mecanismo subutilizado, por uma baixa adesão dos juízes e pela estrutura precária do estado. Uma visão punitivista aliada à falta de estrutura cria essa dificuldade”, lamenta Paula Jardim. O abuso do encarceramento como opção por parte dos juízes seria resultado, em parte, de uma “cultura do medo” em relação à liberdade de presos, diz ela. “Certamente, esse medo faz parte de um conjunto de coisas que podem levar um juiz a não optar pelas penas alternativas. Existe a ideologia punitivista, uma estrutura inadequada para trabalhar com penas alternativas, e, além disso, uma pressão social exigindo penas maiores e mais graves. Há juízes que atendem a esse tipo de demanda, mas não deveriam. O Judiciário não é um órgão de segurança pública”, critica a psicóloga. Segundo a Lei 9.714/98, as penas alternativas “substituem as privativas de liberdade” quando a sentença for inferior a quatro anos (ou “qualquer que seja a pena aplicada, se o crime for culposo”) e o crime não for cometido com violência ou grave ameaça à pessoa.

O titular da Vara de Execução Penal (VEP) do Tribunal de Justiça do Amazonas, Luís Carlos Valois, esteve no epicentro dos acontecimentos no Complexo Penitenciário Anísio Jobim (Compaj), em Manaus, no início de janeiro, ajudando a negociar a libertação de reféns. Embora a rebelião tenha ocorrido entre presos já condenados, o magistrado lembra que nas cadeias amazonenses também existe o problema dos provisórios.
 
“Sempre digo que, sendo rigoroso, a prisão vai estourar; sendo mais ameno, vai estourar também. Não tem jeito, prisão é prisão, o ser humano não foi feito para ficar atrás das grades. O problema dos provisórios também é nosso, no Brasil inteiro há um número maior destes do que de condenados nas cadeias. Um absurdo!”, avalia Valois. Para o juiz, é preciso levar em conta que “o preso provisório, em tese, é a dúvida”, e o condenado “é a certeza jurídica” de que a pessoa cometeu um crime. “Quer dizer, o Judiciário prende mais na dúvida do que na certeza. Não pensa na situação carcerária em relação à sociedade como um todo, age como uma instituição burocrática, faz ‘sua parte’ e acha que os problemas são do Executivo ou do Legislativo. Os juízes não percebem a desigualdade social que afeta pessoas que sentam no banco dos réus à sua frente”. 

Valois salienta que o magistrado tem uma “formação técnica”, sem bases em filosofia, psicologia, sociologia, “e ainda traz todo o ódio e rancor que existe hoje na sociedade”, o que faz dele “um técnico com ódio”. Ele acredita que o “abismo social” existente entre o Judiciário e a sociedade “faz muita diferença na hora do julgamento”, e que isso pode ajudar a explicar a dificuldade para aplicar penas alternativas ao encarceramento.
 
“No Rio de Janeiro, por exemplo, há um apartheid social claro, e o juiz está de um lado. Quando não é juiz, ele está na praia de Ipanema, da Barra da Tijuca, em Búzios. Então, esse cara tem medo, potencializado pela imprensa, que utiliza o discurso do medo em torno da criminalidade, que de fato existe, para vender jornais. As garantias da ordem pública e da instrução criminal, requisitos para uma prisão preventiva, até aparecem nas decisões, mas misturadas com esse sentimento. Se um juiz não pensa a sociedade como um todo e trabalha com medo, acaba punindo o réu por todo o contexto social de criminalidade”, aponta. E completa: “Já vi sentenças e decisões em que o acusado foi preso com 15 trouxinhas de droga e o juiz justificou a permanência na prisão dizendo que ‘o tráfico é o grande mal da sociedade’. Ou seja, 15 trouxinhas viraram o grande mal da sociedade”.

Essa cultura do medo, pondera ele, está diretamente ligada à desigualdade social e ao racismo no Brasil. O relatório do Iser revelou também o perfil majoritário dos encarcerados, uma realidade que infelizmente não é rara: 55% têm entre 18 e 29 anos; 61,6% são negros e 75,08% têm somente até o ensino fundamental completo. Isso contraria a ideia do senso comum de “impunidade geral” no país – não se pode falar de impunidade, ao menos entre negros e pardos pobres e de baixa escolaridade, perfil da maior parte das pessoas mantidas presas indevidamente. 

Do universo dos presos, 28% respondem ou foram condenados por crime de tráfico de drogas. Para o cientista político, ex-secretário de Segurança Pública do Rio de Janeiro e ex-secretário Nacional de Segurança Pública Luís Eduardo Soares, há um “casamento perverso” entre a lei de drogas, que “é absolutamente irracional e criminaliza a pobreza”, e o atual modelo policial. “Por que, em nosso universo de presos, só 12% cumprem pena por homicídio enquanto quase 30% o fazem por transgressões à lei de drogas? Temos uma taxa de impunidade de 92% em relação ao crime mais grave, que é o homicídio doloso. Isso não quer dizer que somos o país da impunidade, temos a quarta população carcerária mundial e a que mais cresce. Somos o país da inversão de valores, estamos encarcerando vorazmente pessoas que não deviam estar lá e estamos negligenciando a vida”, condena.

Segundo um dos representantes da OAB/RJ no Conselho Penitenciário do Estado do Rio de Janeiro (CPERJ), Lucas Noronha, enquanto tratarmos o sistema prisional exclusivamente como punição para o apenado, a realidade não mudará. “A única forma de alterarmos isso é enxergar o sistema como um instrumento de reinserção social. É difícil crer que, após alguns anos de encarceramento em qualquer das nossas unidades prisionais, o apenado terá condições técnicas, físicas e psicológicas de se reinserir na sociedade. Essa forma desumana de tratamento dos presos gera um número imenso de reincidentes, causando um ciclo vicioso de alto custo para o estado e perigoso para a sociedade”, adverte. Noronha considera “inconcebível” se prender um inocente. “Manter na prisão um réu que ao final do processo é absolvido, ou que recebe pena distinta da privativa de liberdade, representa, além de prejuízo relevante ao estado, uma mácula eterna na vida dessa pessoa. O sistema prisional no nosso país é cruel, desumano, e submeter um inocente a esta realidade é totalmente inaceitável. Qualquer indenização paga nesses casos seria pouca”, defende. 

Para Soares, o problema é o modelo no qual a Polícia Militar “é instada pela população a prender, mas proibida por lei de investigar, só podendo prender em flagrante”. E quais são os crimes passíveis de prisão em flagrante? Qual a lei que oferece condições para a implementação dessa ‘produtividade encarceradora’?, questiona, antes de responder: “a lei de drogas”. “Os pequenos varejistas em territórios vulneráveis, os distribuidores de drogas, estes são os principais alvos das prisões em flagrante”, diz, acrescentando que os detidos muitas vezes não portavam armas, não agiram com violência, nem apresentaram ligação com o crime organizado. “Ou seja, não estamos prendendo os traficantes violentos, que se impõem pela força nos territórios de diversas comunidades, mas sim jovens negros, pobres e de baixa escolaridade, que estavam procurando sobreviver através do comércio de substâncias ilícitas”, conclui. O ex-secretário critica também o sistema carcerário em relação ao fato de que os presos “precisam escolher uma facção para dela participar” ao chegarem nos presídios. “Estamos organizando o crime, preparando uma mina explosiva sob nossos pés e gastando muito para fazê-lo, além de destruir vidas de forma absolutamente injusta. Conhecemos o perfil da população submetida a essa situação; se os presos fossem de classe média, brancos, suas prerrogativas seriam provavelmente mais respeitadas”, aposta.

Essa divisão representaria a síntese de uma sociedade marcada pelo preconceito e pela exclusão, na opinião de Noronha. “O jovem negro e pobre é o peão em um jogo que envolve Estado, Judiciário e a população, e no qual seu encarceramento é a hipotética solução para os problemas sociais. A magistratura não solta porque a sociedade não aceita. Neste contexto, ainda temos a famigerada guerra ao tráfico de drogas. Caso tirássemos do sistema prisional todos os condenados por esse crime, a superlotação nos presídios acabaria. A política de combate e prevenção ao uso de drogas precisa ser revista com urgência, pois nessa guerra só há perdedores”, lamenta.

Segundo Soares, estamos “prendendo mal, injustamente, e criminalizando a pobreza, através de uma máquina de prender em flagrante e de uma lei que faculta esse tipo de opressão”. Ele cita o tratamento desigual dado pela polícia aos crimes cometidos em diferentes locais da cidade. “Se em algumas favelas existe essa dinâmica do varejo da droga, é de se imaginar que nos condomínios dos bairros nobres também haja. Mas para entrar nesses locais a polícia precisaria de mandado, que para ser expedido deveria ser precedido de uma investigação, o que a polícia não pode fazer. Ou seja, ela nunca vai solicitar um mandado para entrar em um condomínio de luxo, mas nas favelas entra com facilidade, mesmo sem ordem judicial”.

Paula Jardim ressalta que os presos provisórios acabam não tendo acesso a direitos que os condenados já possuem, como banho de sol, assistência médica, assistência social e estudo. “Por exemplo: um jovem ficou um ano preso provisoriamente. Durante esse período, não estudou. Ele estava na escola antes de ser preso, e ao final do julgamento foi absolvido. Perguntamos por que não estava na escola, e ele disse que não queria mais voltar a estudar”, conta a pesquisadora. “É preciso que as pessoas tenham a dimensão da gravidade disso.
 
Muitos pensam: ‘Ah, mas há casos de pessoas que ficam três anos presas injustamente, três meses não é nada’. Imagine o impacto que isso produz na vida de um indivíduo, principalmente se ele não for condenado à pena de prisão, ou seja, se tiver sido preso à toa? O Estado não repara os danos, poderia até existir alguma indenização, mas é difícil a pessoa conseguir, demora anos. Acaba ficando por isso mesmo”, conclui.

Soares recorda-se da visita que fez a uma carceragem em Nova Iguaçu, em certa ocasião. “As condições físicas e sanitárias eram precárias. Um preso se aproximou e me pediu ajuda para descobrir por que estava lá, havia meses. Não tinha tido acesso a nenhum advogado ou parente, sequer tinha ideia de quanto tempo ficaria ali. É uma situação iníqua, kafkiana, é um limbo”, relata. Para ele, “o Estado é criminoso porque transgride a lei e o faz reiteradamente, e naturalizando esse procedimento”. E os presos provisórios, ao serem libertados, “saem humilhados, com a autoestima ferida, têm dificuldades de inserção profissional, social. Nossa sociedade está criando mais facilidades para a inserção na atividade criminal”, ressalta.

Valois também defende a aplicação de penas alternativas. “Sempre que posso dar interpretações na direção do desencarceramento, o faço, com base na lei, na jurisprudência, em precedentes, na Constituição, nos tratados internacionais etc. A prisão que existe na lei é uma, e na realidade, é outra. Ou seja, toda prisão no Brasil é ilegal. Aí me perguntam: ‘Se o senhor acha ilegal, por que não solta todo mundo?’. Eu digo que não faço isso porque senão quem vai preso sou eu”, diz o magistrado. E garante: “Se a gente não prendesse mais ninguém a partir de agora, só aplicasse penas alternativas e medidas cautelares, daqui a 50 anos teríamos menos crimes na sociedade. A prisão aumenta o crime”.

Abrir WhatsApp