06/02/2017 - 15:36

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É proibido publicar

06/02/2017 - 15:36

É proibido publicar

Pedidos de censura prévia de conteúdo jornalístico crescem 300% nas eleições de 2016, em comparação com o pleito de 2012. Fenômeno natural ou volta da repressão à imprensa?
 
NÁDIA MENDES
Em uma democracia consolidada, atos de cerceamento jornalístico são impensáveis. No Brasil, estamos livres da censura institucional desde o fim da ditadura militar, em 1985, e temos o direito à liberdade de expressão salvaguardado na Constituição Federal de 1988: “A manifestação de pensamento é livre, sendo vedado o anonimato”, diz o 4º parágrafo do artigo 5º. No entanto, nos últimos anos, observa-se o crescimento de ações na Justiça com a intenção de tolher essa garantia.

Só nas eleições municipais de 2016, os candidatos a prefeito e vereador ingressaram com 604 ações na Justiça pedindo a suspensão de programação de rádio, circulação de jornais e retirada de sites e conteúdos jornalísticos da internet em todo o país. Destas, 97 foram além e pediram também a censura prévia, ou seja, que os veículos se abstivessem de publicar algum conteúdo relacionado àqueles candidatos.

Para efeito de comparação, na eleição de 2012 foram 421 ações judiciais para retirada de informações, sendo 24 solicitando algum tipo de censura prévia de conteúdo. Os números mostram, respectivamente, um aumento de 43,5% e 300% em quatro anos.

Os dados são do projeto Ctrl+X, da Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji), que desde 2014 mapeia essas ações. Segundo o coordenador do projeto, Tiago Mali, a ideia de criar o catálogo surgiu da percepção de que casos de intimidação judicial e censura por meios judiciais estavam complicando o exercício da liberdade de informação e expressão. “Em posse dessas informações, a sociedade pode entender o que está acontecendo e cobrar das pessoas públicas que fazem uso desse instrumento judicial para censurar algum tipo de conteúdo. Isso pode nos ajudar a constrangê-las, pode promover um comportamento melhor, de respeito pela liberdade de expressão”.

O pleito de 2016 foi o primeiro depois da minirreforma eleitoral que estabeleceu novas regras, incluindo a proibição do financiamento empresarial de candidaturas e a diminuição do período de campanha eleitoral, de 90 para 45 dias. Para o presidente da Comissão de Direito Eleitoral da OAB/RJ, Eduardo Damian, o período eleitoral mais curto não influenciou no aumento de ações. “As representações eleitorais podem ser tanto anteriores quanto posteriores ao período de campanha propriamente dito. Mesmo com esse tempo mais curto, as ações eleitorais já são recebidas desde o início do ano”.

Em 2016, o Judiciário acatou 15% das representações que requeriam algum tipo de censura prévia. Entre os pedidos negados estão algumas que pedem, por exemplo, que o Facebook filtre qualquer tipo de expressão negativa sobre o candidato. “Isso obrigaria a criação de um filtro específico que pudesse entender o que são palavras negativas. O que não faz nenhum sentido. Mas os pedidos, em geral, são para que antes mesmo de alguma coisa ser publicada já exista uma condenação que impeça isso”, explica Mali. 

Entre os casos mais raros de pedidos de censura prévia estão situações em que o candidato adversário é dono de um veículo de comunicação e o usa para fazer propaganda negativa, e não divulgação de informação. Assim, o candidato prejudicado entra com um pedido para retirar aquele veículo do ar. “A nós, como Abraji, não cabe julgar o mérito. Mas nessas situações fica mais difícil dizer que existe um lado certo ou errado”, pondera Mali.

Liberdade de informação fortalece a democracia
A livre circulação de conteúdo deveria se tornar mais forte no período eleitoral. É o que defende o advogado especializado em liberdade de imprensa Alexandre Fidalgo. Para ele, há um contrassenso quando tantos pedidos de retirada de informação vêm, justamente, dos candidatos a representantes do povo. “O período eleitoral deveria simbolizar o ápice da democracia, em que a sociedade mais necessita de informações para fazer juízo de valor a respeito daqueles que se colocam como seus representantes”.
 
A explicação, segundo Fidalgo, pode estar na não compreensão do que seja efetivamente uma democracia por parte dos próprios candidatos. Para ele, partidos e políticos pregam um discurso democrático para o eleitor, mas não suportam ser objeto de crítica ou de revelações. “Eles se valem de qualquer medida, mesmo que censória, para a sua proteção, indo na contramão da democracia”. 

Fidalgo defende que a proibição de qualquer difusão de conteúdo jornalístico constitui a censura na forma clássica, comum em regimes autoritários. Para ele, o alto número de pedidos censores é bastante prejudicial para a democracia. O advogado destaca que existem tutelas jurisdicionais cabíveis contra possíveis abusos da imprensa. As condenatórias, do ponto de vista cível e criminal, e também o direito de resposta. “O nosso ordenamento jurídico não permite a retirada de conteúdo jornalístico como uma qualidade de tutela jurisdicional. Sempre que isso acontecer, a meu ver, estaremos diante um ato censório, de uma decisão contrária à ordem constitucional”.

Já a professora Maria Cristina Castilho Costa, que coordena o Observatório de Comunicação, Liberdade de Expressão e Censura (Obcom) da Universidade de São Paulo (USP), discorda de que estejamos diante da censura clássica. “A que existe hoje é plural e diluída, e atinge certas pessoas e certas informações. São novas formas de interdição, e não a volta da censura”, afirma.

Maria Cristina argumenta que o desenvolvimento dos meios de comunicação e a importância destes na formação da opinião pública geram preocupação entre os interessados em manter a própria imagem acima das trocas de informação. E a popularização da internet acelerou esse processo. “O Judiciário cada vez mais se arvora no direito de tomar decisões a esse respeito, atuando contra a liberdade de expressão, as denúncias e as críticas às autoridades e poderes constituídos”, diz.
 
Limites 
Da mesma forma que a Constituição garante o direito à liberdade de expressão e o classifica como uma garantia fundamental dos cidadãos brasileiros, ela também assegura, no parágrafo 5º do artigo 5º, o direito de resposta, proporcional ao agravo, e a indenização por dano material, moral ou à imagem. 
 
Alexandre Fidalgo destaca que a liberdade de expressão deve ser exercida de modo compatível com outros princípios, como o direito à honra e à vida privada. “Todos esses valores são compatíveis e não se excluem, de modo que observar direitos da personalidade não traduz permissão para intervenção estatal em conteúdo jornalístico, sob pena de o Estado tornar-se um órgão regulador da imprensa”.

As principais alegações dos candidatos para ingressar com as ações são: violação de direitos autorais, difamação, violação à legislação eleitoral, violação à privacidade, violação à marca. A difamação, porém, abrangeu 448 das 604 ações em 2016, sendo o principal motivo destas. Para Fidalgo, durante o período eleitoral há uma interpretação canhestra dos conteúdos jornalísticos difundidos. “Sob o argumento da ofensa, atribui-se a uma matéria crítica ou denunciativa um elemento de disputa eleitoral, em que o texto beneficia um adversário político. A utilização dessa estratégia é recorrente no Brasil”, destaca.

A coordenadora-geral de projetos na área de liberdade de expressão e privacidade do Instituto Tecnologia e Sociedade do Rio (ITS Rio), Celina Bottino, pontua que, pela natureza da função, pessoas públicas têm o direito à privacidade mais restrito. “A difamação é um crime tipificado, mas é um pouco genérico pois trata de ‘fato ofensivo à reputação’. Mas, e se esse fato for de interesse público?”, questiona. Ela lembra que discursos de ódio não entram no rol de liberdade de expressão, sendo proibidos e podendo ser tipificados como crimes.

Para Celina, “a retirada de informação deve ser o último recurso”. Ela dá como exemplo um candidato que acredita ter sido lesado por uma publicação no Facebook. Em vez de pedir que seja removida, ele deveria usar a própria rede social para dar sua versão dos fatos. “É uma outra postura, que deveria ser mais utilizada pelos políticos. Se não é verdade, ir a público explicar para o eleitor qual é a verdade, oferecer mais fatos e se expor mais para que os cidadãos possam chegar a um entendimento de forma livre. Nada de censura. Com informação livre na rede todos saem ganhando”.

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