03/10/2013 - 15:52

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Como atender às demandas da população com o atual Direito Público?

03/10/2013 - 15:52

Como atender às demandas da população com o atual Direito Público?

RODRIGO TOSTES DE ALENCAR MASCARENHAS*

Quando a população foi às ruas ficou muito claro que sua demanda, em boa parte, concentrava-se em mais e melhores ações por parte dos poderes públicos.
 
 Ora, para entregar aquilo que foi demandado, o Estado precisa se utilizar do instrumental do Direito Público. Sob a ótica do Direito Constitucional, poderíamos dizer que tudo o que a população pede já é imposto pela Carta. Com efeito, no Direito brasileiro a corrente hegemônica se caracteriza pelo reconhecimento da força normativa de todas as normas constitucionais, que seriam fonte de direitos subjetivos aos seus destinatários, direitos que podem (todos) ser exigidos em juízo. Com o passar do tempo este reconhecimento passou para a jurisprudência, repleta de decisões determinando ao Poder Público as mais distintas prestações. 
 
Mas a pobreza, infelizmente, não acaba porque assim se inscreveu na Constituição. Toda ação do Estado (prestação de serviços públicos de qualidade, assistência social etc.) exige uma série de atos.
Ou seja, um prefeito ou governador, para implementar as promessas constitucionais (entregar estradas, hospitais, escolas, serviços), precisará necessariamente aplicar (e estará sujeito à aplicação de) outras normas do Direito Público, incluindo a Lei de Licitações, a Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), a Lei Eleitoral e a Lei de Improbidade Administrativa.
 
Pois bem, estas normas, embora devam ser interpretadas “sistematicamente” à luz da Constituição, obedecem a lógicas próprias, derivadas em grande medida das razões que impuseram sua aprovação.
 
Referimo-nos ao movimento por ética na política e responsabilidade na gestão das finanças públicas. O primeiro nasce de clamor iniciado com o processo de impeachment do presidente Collor, reavivado com o caso dos “anões do orçamento” e denúncias mais recentes. Este movimento resultou, na esfera legislativa, na aprovação de um conjunto de leis cujo objetivo principal é criar a maior quantidade possível de mecanismos de controle sobrepostos. Ou seja, evitar o ilícito passa a ser o objetivo primordial, que deve ser perseguido mesmo à custa do sacrifício de outros (uma licitação para comprar papel não é mais concebida com o fim maior de comprar... papel e sim com o de evitar que se roube ao comprar papel, mesmo que este acabe por não ser comprado). A correnteza deste movimento também é formada por normas do Direito Eleitoral, informadas pelo mesmo desejo de ética, e pelo movimento relacionado à necessidade de responsabilidade fiscal, ambos acompanhados de grandes entraves.
 
Em suma, o que a sociedade exige de um lado, e o Direito Constitucional “garante” juridicamente, o restante do Direito Público dificulta ao máximo.
 
Vejamos exemplos da LRF e da Lei Eleitoral, ambas carregadas de boas intenções. Antes registre-se, em relação às proibições decorrentes desta última, que sequer se sabe se elas atingem apenas o ente em cuja esfera estiverem sendo realizadas eleições ou se, ao contrário, todos os entes são sempre atingidos. Entendemos que a interpretação mais correta é a primeira, não só porque restrições se interpretam restritivamente mas, em especial, pelas consequências lamentáveis que sua interpretação extensiva causa à execução de políticas públicas, mas a questão permanece controvertida.
 
Pois bem, vamos supor que os governantes desejem iniciar um novo programa social, incluindo transferência de renda e outros benefícios, com o objetivo de atender o art. 3º, III, da Constituição, erradicando a pobreza e diminuindo as desigualdades. Como se trata de programa novo, não incluído no orçamento de 2013, a iniciativa deverá ser incluída no projeto de lei orçamentária de 2014, para então ter início.
 
Mas isto não é “legalmente” possível. Isto porque no último ano do mandato ou – dependendo da interpretação que se dê – em qualquer “ano em que se realizar eleição”, segundo o art. 73 § 10 da Lei 9.504/97, é proibido distribuir gratuitamente bens, valores ou benefícios por parte da administração pública, exceto nos casos de: calamidade; estado de emergência ou de programas sociais autorizados em lei e já em execução orçamentária no exercício anterior. Ou seja, num país tão carente de políticas públicas na área social, um ente não pode iniciar um programa no último ano do mandato do respectivo dirigente e, dependendo da interpretação, tampouco pode iniciar no segundo ano. O problema é que, devido ao fato de que o chefe do Executivo governa o primeiro ano com o orçamento decorrente de proposta enviada por seu antecessor, é provável que não haja previsão orçamentária que permita o início do programa no primeiro ano de governo. Conclui-se então que novos programas sociais só são iniciados no terceiro ano de governo. Se estivéssemos na Escandinávia é possível que a população pudesse esperar. No Brasil...
 
Mas vamos mudar o exemplo e supor que, para atender à demanda por mais saúde, um governador determine a seus secretários que estruturem uma modelagem de Parceria Público Privada (PPP) para construir e operar três novos hospitais. Pois bem, toda a estruturação da operação, a minuta do edital, a consulta pública, a manifestação do Tribunal de Contas, a licitação e a assinatura do contrato terão que ocorrer até 30 de abril de 2014 (o que é virtualmente impossível). Do contrário, incidirá a limitação prevista no art. 42 da LRF, que veda aos governantes nos últimos oito meses de mandato, contrair obrigação “que não possa ser cumprida integralmente dentro dele, ou que tenha parcelas a serem pagas no exercício seguinte sem que haja suficiente disponibilidade de caixa para este efeito”. 
 
Como se interpreta este dispositivo? Uma linha restritiva entende que qualquer contrato celebrado nesse período implica para o governante a obrigação de deixar em caixa o seu valor integral. Uma segunda linha entende que, para a obrigação prevista no plano plurianual e para aquela relativa a serviço contínuo, a autoridade deverá deixar recursos apenas para o pagamento dos valores correspondentes a prestações executadas no mesmo ano. Concordamos com esta segunda linha mas... se os órgãos de controle não concordarem, o administrador estará sujeito a uma ação de improbidade por violação ao princípio da “legalidade” (art. 11 da Lei 8.429/92) ou, para não correr este risco, ele simplesmente não faz mais nada de relevante nos últimos oito meses de seu mandato.
 
E se trocarmos a PPP pela construção de hospitais operados por servidores estatutários? Neste caso os editais são bem mais simples e, quem sabe, o contrato será celebrado até 30 de abril de 2014. Mas e os novos médicos e enfermeiros para operar os hospitais? Segundo a Lei Eleitoral, é proibido admitir servidor público salvo a nomeação dos aprovados em concursos homologados até o final do sexto mês do último ano de mandato. Ou seja, ou a administração encaminha os projetos de lei, cria os cargos, faz o concurso, nomeia e dá posse até o sexto mês ou então... que se aguarde 2015.
 
Estes exemplos mostram que o Direito Público brasileiro é, em boa medida, constituído por normas que apontam para direções opostas. Estas normas, em geral, são analisadas por doutrina e jurisprudência de forma isolada, com foco apenas nos nobres objetivos isolados de cada uma delas (combater a corrupção, garantir a igualdade do pleito etc.). Quando aplicadas em conjunto – e assim é o mundo real – o resultado é a paralisia kafkiana.
 
Conhecer esta realidade é o primeiro passo para lançar um grande movimento destinado a repensar a coerência sistêmica do Direito Público e, nesse ponto, não temos dúvidas de que é possível, inclusive com os novos recursos tecnológicos, encontrar caminhos que possam conciliar preocupações legítimas com o objetivo principal: uma administração que consiga entregar aos cidadãos aquilo que eles pedem e que a Constituição promete.
 
*Procurador do Estado do Rio de Janeiro e conselheiro da OAB/RJ
 

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