14/10/2016 - 13:22

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TV e rádio com conteúdo adulto a qualquer hora do dia

14/10/2016 - 13:22

TV e rádio com conteúdo adulto a qualquer hora do dia

Decisão do STF libera emissoras de televisão e rádio de sanção por descumprimento de classificação indicativa por horário.
 
CÁSSIA BITTAR
Desde o início de setembro, você deve ter notado alguma diferença na programação da TV aberta. Cenas que antes só poderiam ser exibidas após às 20h, com insinuação sexual ou violência, têm surgido na tela mais cedo, no horário da tarde ou no início da noite. Um dos exemplos é a reprise, apresentada pela Rede Record, por volta das 16h, de uma novela passada originalmente às 22h, com sequências ousadas de sexo e cenas de tiros, espancamentos e atropelamento intencional, além de palavrões. Isso porque no último dia 31 de agosto o Supremo Tribunal Federal (STF) suprimiu, ao julgar procedente a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 2.404, trecho do artigo 254 do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), que estabelece multa e até suspensão de programação para a emissora que exibir atrações em horário diverso do autorizado pela classificação indicativa.

Na prática, a decisão significou que as emissoras de rádio e TV podem exibir qualquer tipo de conteúdo ao longo do dia. A classificação indicativa criada a partir de teor sexual, de nudez, uso de drogas e violência não foi abolida, apenas as sanções para emissoras baseadas na recomendação horária. De acordo com o novo modelo, basta haver um aviso sobre a classificação etária antes do início do programa.

Diferentemente do que acontece com filmes ou jogos de videogame, as próprias emissoras fazem a classificação dos programas que veiculam, seguindo as diretrizes estabelecidas por portaria do Ministério da Justiça em 2006.
A decisão reacendeu um debate que existe pelo menos desde 2001, quando o Partido Trabalhista Brasileiro (PTB) propôs  a ADI. Dez anos depois, em 2011, a iniciativa teve o apoio da Associação Brasileira das Emissoras de Rádio e Televisão (Abert), que ingressou no processo como amicus curiae, utilizando o argumento central de que a determinação de faixas de horário viola a liberdade de expressão.

Por outro lado, durante todo esse período, a possibilidade de exibição de conteúdos recomendados inclusive para maiores de 18 anos em qualquer horário, o que, com o dispositivo do ECA, só era permitido após às 23h, foi vista com preocupação por órgãos ligados à proteção da infância e setores da área jurídica e de comunicação.
Em 2014, o Instituto de Pesquisas Sociais, Políticas e Econômicas do Ministério da Justiça e a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) realizaram uma pesquisa em que foi analisado o comportamento das crianças ou adolescentes e dos pais ou responsáveis em relação ao uso das mídias e da percepção sobre a classificação indicativa.

Na ocasião, 85% dos entrevistados opinaram que as regras de classificação indicativa na TV aberta deveriam permanecer, obedecendo à faixa de horário recomendada para cada idade. No mesmo ano, cerca de 80 organizações ligadas à cultura, educação e mídia lançaram uma nota pública reiterando o apoio à classificação indicativa por horário, entre elas a ONG Intervozes, que trata de políticas sobre comunicação e é um dos órgãos que integram o Comitê de Acompanhamento pela Sociedade Civil para a Classificação Indicativa, criado pelo Ministério da Justiça para acompanhar as políticas públicas ligadas à questão.

De acordo com a coordenadora da Intervozes, Bia Barbosa, a ação julgada em agosto pelo Supremo não acompanha a atualização e a reformulação da política de classificação indicativa ocorrida em 2006. “Essa ação foi movida em 2001, em uma época na qual a atual política de classificação indicativa sequer estava em vigor no Brasil. Foi um processo que, ao longo desses 15 anos de tramitação no STF, não reconheceu a atualização que foi desenvolvida em diálogo com as empresas de comunicação”, afirma, referindo-se à edição de diversas portarias que regulamentaram a atual política pela Secretaria Nacional de Justiça há 11 anos, a partir de uma série de reuniões com representantes da sociedade civil, de órgãos do poder público, das emissoras e de outros meios de comunicação.

Advogado da Abert, tendo atuado na ação desde o ingresso da entidade no processo, Gustavo Binenbojm lamenta a demora para o julgamento, considerando que a questão era de “muito mais relevância” na época em que se iniciou a ADI: “É uma decisão ainda importante pelo simbolismo, mas  cada vez menos, porque deve-se reconhecer que o consumo de TV por assinatura e de internet, que não constituía uma realidade considerável em 2001, vem crescendo cada vez mais. Não deixa de ser uma decisão com cheiro de naftalina”.

Apesar disso, Binenbojm comemora a retirada do que chamou de uma “pedra no sapato” das emissoras. “A indicação por horário era um problema maior do que se pode imaginar para as emissoras, que tinham que adequar seu conteúdo à classificação indicativa por conta da ameaça da reclassificação para uma outra faixa horária, o que poderia inviabilizar o programa. Já aconteceu de novelas que eram consideradas com conteúdo impróprio precisarem cortar personagens, modificar perfil ou vocabulário, eliminar parte da trama que envolvia crimes, sexualidade ou alguma questão que na interpretação do Ministério da Justiça era imprópria para aquele horário. Costumo dizer que acontecia uma censura às avessas”, diz.

O advogado cita o exemplo da novela Viver a vida, exibida pela Rede Globo em 2009, no horário das 21h. Na trama, a atriz mirim Klara Castanho vivia uma criança de índole má, o que, segundo ele, foi motivo de pressão sobre os autores por parte do Ministério da Justiça, por não considerar a abordagem da questão adequada para o horário. A solução teria sido afastar a personagem.

“O que eu pondero é que a classificação indicativa com vinculação horária era um instrumento que impedia a exibição de muito conteúdo sem que a sociedade soubesse. Quando se fala que não havia censura é porque se desconhece a cena que foi excluída, o diálogo que foi suprimido para que aquele programa pudesse ir ao ar naquele horário. Esses cortes parecem bobos, mas significam muito se tirarmos daí uma série de desdobramentos em relação à liberdade de expressão e ao que torna o ambiente cultural brasileiro mais pobre”, alega Binenbojm.

Para ele, os critérios do Manual de Classificação Indicativa do governo dão margem a diferentes interpretações: “Os critérios são fluidos e trazem insegurança jurídica. Exemplo disso foi o que aconteceu com o filme Aquarius recentemente. A princípio, foi classificado para maiores de 18 anos mas, diante de protestos, duas semanas depois o Ministério da Justiça reviu a classificação para 16 anos”. O advogado conta que o ministro do STF Marco Aurélio Mello, em seu voto, lembrou também a discussão sobre moralidade pública. “Um exemplo interessante é o beijo gay. A avaliação sobre a adequação ou não de se exibir um beijo entre duas pessoas do mesmo sexo é questão que envolve um desacordo moral totalmente razoável na sociedade. Minhas filhas são preparadas para entender que aquilo é uma forma de demonstração de afeto, mas há famílias que, por opção filosófica ou religiosa, acham que crianças só podem estar expostas a esse conteúdo a partir de uma certa idade. A conclusão disso é que esse julgamento é pessoal, familiar. Cada família deve decidir o conteúdo a que seus filhos estão expostos”.

Bia Barbosa rebate os argumentos da Abert: “Não se pode falar em censura de maneira nenhuma nesses casos porque o Ministério da Justiça não avalia previamente esse conteúdo. As emissoras de rádio e TV produzem, colocam no ar e o Estado faz um monitoramento a posteriori. Censura é necessariamente prévia. Se as emissoras estão deixando de colocar alguma coisa no ar ou não, isso é uma decisão delas, que deve ser tomada com base nos critérios estabelecidos no Manual de Classificação Indicativa”.

Ela afirma que as normas, ao contrário do que Binenbojm sustenta, são estritamente claras: “Não há nada de subjetivo nesses critérios. O manual é muito claro sobre que tipo de cena de sexo é considerada imprópria para cada faixa etária e não faz nenhuma distinção se essa cena de sexo é entre casais hetero ou homossexuais, por exemplo. A comprovação dessa objetividade é que nesses dez anos da política de classificação indicativa, entre 95% e 98% das classificações que as emissoras fizeram foram ratificadas pelo Ministério da Justiça. Se houvesse subjetividade, o governo estaria reclassificando vários programas e não foi isso o que aconteceu”, argumenta, reforçando, ainda, o direito de defesa das emissoras nos casos de sanções: “Essa é uma discussão geral sobre comunicação no Brasil. As emissoras mais uma vez se escondem sob um discurso de liberdade de expressão, desinformam a sociedade sobre o que significa censura de fato e, na verdade, os interesses colocados aí são claramente econômicos”.

Segundo dados do Ibope Media coletados junto a jovens com idade entre 4 e 17 anos, de 15 regiões metropolitanas do Brasil, crianças gastavam em média quatro horas e 43 minutos em frente à TV por dia, em 2004. Dez anos depois, esse tempo aumentou 18%.

“De 2014 para cá, acreditamos que o tempo se mantém nas cerca de cinco horas e meia em média de consumo diário de crianças na TV. Mas, mesmo se a audiência tivesse caído, a lógica não pode ser quantitativa. Temos que considerar o impacto de qualquer conteúdo considerado impróprio na vida de cada criança”, acredita a coordenadora da Intervozes. “Achar que, na realidade brasileira, as crianças estão diante da TV sempre com um adulto ao lado é de uma inocência absurda. É desconhecer como funcionam as famílias, a realidade da imensa maioria das crianças. É dar um poder às emissoras que não existe em nenhuma democracia mais antiga do que a nossa”, observa.
 
Psicólogos veem decisão com preocupação
 
Para a psicóloga especializada em Gestalt terapia e terapia familiar Juliana Pellegrino, a televisão tem o poder de influenciar o comportamento de adultos e, nas crianças, cujos sujeitos ainda estão em construção, o impacto é mais forte: “Nelas, a capacidade de processar e lidar com informações ainda está altamente vinculada com o externo. Criança não tem bagagem emocional para lidar com conteúdos inapropriados. Saber lidar com o impacto das informações recebidas e dar-lhes significado, interpretando-as e compreendendo-as como uma visão de mundo, é uma tarefa extremamente difícil”.

Pellegrino explica o processo de absorção do conteúdo midiático na infância: “A televisão apresenta verdades. Tudo que aparece ali existe – até quando envolve contos ou histórias fictícias. Para a criança, aquilo que é visto é concreto –  e, se existe, ela entende que deve ser absorvido e guardado. Mesmo que não a afete instantaneamente, fica registrado como algo que deve lembrar, no caso de um conteúdo que a tenha impressionado de alguma maneira. O desenvolvimento humano se dá com base na conexão afetiva, que, em uma de suas muitas ramificações, envolve a imitação. Portanto, o conteúdo televisivo ao qual uma criança é exposta deve ser muito bem avaliado, ele tem a capacidade de afetá-la muito bem ou muito mal.”

De acordo com a terapeuta, o contexto social em que pais geralmente vivenciam uma jornada de oito horas de trabalho externo deve ser considerado, assim como o dever das emissoras sobre a vulnerabilidade intelectual dos menores: “É quase ingenuidade achar que, em uma sociedade na qual qualquer estabelecimento comercial possui ao menos um aparelho de TV ligado, um criança estará protegida de conteúdos inadequados.”

O psicólogo cognitivo-comportamental Nei Carneiro, especializado na área da infância, reforça o ponto apresentado por Pellegrino: “Quando uma comida chega à boca de um adulto, ele sente o paladar, a textura. Se estiver boa, ele mastiga e engole, se estiver ruim ele não come mais. A criança, caso não tenha sido instruída previamente, engole, independentemente se aquilo vai fazer mal ou não. Assim acontece com as informações. Quando os pequenos são expostos a conteúdos prejudiciais para sua formação, como os de violência, entram em conflito com aquilo que aprendem se seu ambiente familiar for tranquilo, ou ajudam a perpetuar esquemas desadaptativos, caso seu ambiente seja o de uma família agressiva”.
 
Discussão jurídica continua

Presidente da Comissão de Direitos da Criança e do Adolescente da OAB/RJ, Silvana do Monte Moreira chama a decisão do STF de um “grande contrassenso”. O Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda), diz Silvana, “considera abusiva toda publicidade direcionada a crianças desde 2014. De igual forma posicionou-se o STJ com relação à matéria em decisão de uma Ação Civil Pública do Ministério Público de São Paulo, que teve origem na atuação do Projeto Criança e Consumo, do Instituto Alana. A ação considerava abuso uma campanha publicitária de um produto para o público adulto pela propaganda se dirigir ao público infantil. Não entendo como de menor importância a liberação das emissoras com relação à exibição de qualquer tipo de conteúdo sem a limitação de horário, bastando, apenas o aviso sobre a classificação etária”.

Na avaliação de Silvana, há, nesse caso, uma “inversão de prioridades” expostas na Constituição Federal. “O artigo 227 da Carta determina que é dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à educação, ao lazer, à cultura, à dignidade, ao respeito, e colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. Entendo que não estaremos cumprindo os direitos de mantê-los livres da violência, crueldade e opressão ao permitirmos às emissoras de TV tal liberdade, colocando em último lugar, como de praxe, os princípios do superior interesse da criança”.

Por outro lado, Binenbojm argumenta que o artigo 254 do ECA seria inconstitucional quando diz que “é proibido exibir programa de rádio e televisão em horário diverso do autorizado”. Segundo ele, a lei submeteu a programação a uma autorização, enquanto o texto constitucional dispõe que a liberdade independe “de censura ou licença”.

Na interpretação de Silvana, o princípio da liberdade de expressão, utilizado na ação, não se sobrepõe: “Os pais ainda se sentem seguros sabendo que nos horários até 20h não haverá a exposição de sexo, drogas, violência, incitação ao crime, dentre outras temáticas que são constantes nos filmes e séries de TV. A partir do momento em que caem as punições às emissoras, toda a gama de assuntos inadequados estará a um clique de qualquer controle remoto. Hoje, a TV mostra cada vez mais o lado negativo da humanidade. É preciso que consigamos manter a infância e a adolescência a salvo de tantas barbáries. Não se trata de encapsulá-los, mas sim de não os expor antes da maturidade”, salienta.

Bia Barbosa afirma que, mantida a decisão do Supremo, que ainda não foi publicada, a Intervozes, junto a outras organizações, recorrerá à Comissão Interamericana de Direitos Humanos (OEA). “Com as mudanças na grade de programação que ocorreram nesse último mês já há uma concretude de violação dos direitos de criança”, afirma, contando que a ONG já se articulou com o órgão internacional para apresentar a questão.
Ela diz que a própria decisão gera diferentes interpretações, podendo ainda não ser permitida a desvinculação horária daquela exigida no Manual de Classificação Indicativa: “Estamos solicitando ao Ministério da Justiça que, diante deste cenário, reúna rapidamente o comitê, porque, na nossa avaliação, a política ainda vale. O que o STF revogou foi um trecho do artigo do ECA que previa sanção, mas, se a política continua em vigor, os horários também continuam. Esta é uma leitura da Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão também, a de que é possível judicializar os casos de descumprimento da classificação indicativa por horário. É um debate que vai ter muita briga pela frente.”, prevê.

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