16/12/2015 - 13:05

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Breve crônica de um desastre anunciado: a natureza como mercadoria

16/12/2015 - 13:05

Breve crônica de um desastre anunciado: a natureza como mercadoria

Os eventos futuros projetam sua sombra muito antes.
Cícero

RONALDO COUTINHO*
No modo de produção capitalista, o caráter universal do desenvolvimento das forças produtivas expressa a especificidade de uma forma de apropriação da natureza, que é a da apropriação privada. O metabolismo estabelecido pelo capital, em sua relação com o meio ambiente, pressupõe riscos ambientais crescentes, inerentes a um modo de produção que necessita destruir a natureza para transformá-la em mercadoria: a água, o solo, a vegetação, entre outros elementos, a partir do momento em que são contaminados, poluídos e degradados, justificam sua transformação em bens destinados ao mercado. Por isso, a reprodução desse modo de produção não sugere processos revitalizantes, posteriores ao esgotamento dos ciclos biológicos dos ecossistemas.

A exacerbação das questões ambientais, desde as últimas décadas do século passado, é um indicador da destrutividade inerente ao modo de produção capitalista, cujas crescentes demandas de produção e acumulação de riqueza vêm se defrontando com os seus próprios limites de expansão. A dinâmica destrutiva do sistema se mantém e se aprofunda a despeito das iniciativas e insistentes prescrições sobre a necessidade de preservação/conservação dos bens naturais, tais como a adoção de tecnologias de produção menos absorventes de recursos naturais e a crítica ao consumismo, face ao esgotamento progressivo desses recursos e ao aumento dos resíduos de toda espécie.

A tragédia de Mariana, o maior acidente da história em volume de material despejado por barragens de rejeitos de mineração, com os 62 milhões de metros cúbicos de lama que vazaram dos depósitos da mineradora Samarco, representam uma quantidade duas vezes e meia maior do que o segundo acidente do gênero, na mina canadense de Mount Polley (4/8/2014). No caso de Mariana, embora ainda não seja possível uma correta quantificação dos prejuízos, pode-se afirmar, sem dúvida, que há danos irreversíveis, em toda a extensão da Bacia do Rio Doce, a quinta maior bacia hidrográfica brasileira, com a área de 83.400 quilômetros quadrados, equivalente a vários países europeus.

A estimativa de diversos biólogos sobre a duração de uma ainda incerta recuperação do Rio Doce varia de 20 a 30 anos. E as projeções de custos dessa recuperação indicam até mesmo a possibilidade de ela se mostrar financeiramente inviável, até porque desastres ambientais têm vida longa e a lama que mata pessoas, animais, plantas, ao se depositar nas margens e no leito do Rio Doce, se torna um mal crônico que continua a impactar o ambiente. Essa lama, ao secar e se compactar, asfixia a vegetação, altera o fluxo do rio e sua dinâmica e, embora a Samarco insista na risível afirmação da inexistência de substâncias nocivas à saúde na composição dos rejeitos vazados, amostras colhidas pelo Instituto de Gestão de Águas de Minas Gerais em 13 diferentes pontos indicam a presença de alguns metais acima dos limites legalmente permitidos (cádmio, arsênico, chumbo, cromo níquel, cobre e mercúrio).

A responsabilidade pelo desastre, além da Samarco – que persiste na sistemática omissão de informações indispensáveis à efetiva elucidação do trágico episódio –, também poderá ser parcialmente dividida com o governo mineiro e os órgãos federais envolvidos na fiscalização e monitoramento das medidas de segurança e do fiel cumprimento da legislação. Especialmente da Lei 12.334, de 20 de setembro de 2001, que estabeleceu a Política Nacional de Segurança de Barragens destinadas à acumulação de água para quaisquer usos, à disposição final ou temporária de rejeitos e à acumulação de resíduos industriais, que visa a garantir a observância de padrões de segurança das barragens de maneira a reduzir a possibilidade de acidentes e suas consequências” (art. 3, I), “promover o monitoramento e acompanhamento das ações de segurança empregadas pelos responsáveis por barragens” (art. 3, III). Lei que dispõe no art. 4, III: “o empreendedor é o responsável legal pela segurança da barragem, cabendo-lhe o desenvolvimento de ações para garanti-la” . E também que “a fiscalização de segurança de barragens caberá, sem prejuízo das ações fiscalizatórias dos órgãos ambientais integrantes do Sistema Nacional de Meio Ambiente (Sisnama), à entidade outorgante de direitos minerários para fins de disposição final ou transitória de rejeitos” (art. 5.III). Enfim, um diploma legal que fixa responsabilidades e define planos de segurança, obrigatoriedade de manuais de procedimentos de inspeções de segurança e de monitoramento e relatórios de segurança de barragens, revisões periódicas, plano de ação de emergência etc.

Desastres como o de Mariana são evitáveis com adequada e sistemática manutenção. Como adverte um especialista, “barragens não são estruturas convencionais como a maioria das obras civis. Exigem atenção permanente do proprietário, em função das mudanças contínuas nas solicitações a que são submetidas durante a vida útil (...) Barragens são sempre vitimadas pelos excessos de precipitação que podem causar aumentos bruscos de cargas por elevação não prevista do nível da água ou pelo encharcamento dos resíduos contidos. Muitas têm sistemas de monitoramento que precisam ser lidos continuamente, seguindo um manual. Não podem, portanto, ficar abandonados à própria sorte, sem que se obedeçam às medidas de segurança destinadas a impedir sua degradação” (Francis Bogossian, O Globo, 19/11/2015; grifos meus).

Mas aqui cabem algumas questões recorrentes: a fiscalização é efetivamente exercida pelos órgãos públicos responsáveis? No caso de Mariana, o plano de contingência da Samarco só foi apresentado mais de uma semana após o incidente e criticado pelo Ministério Público. Até agora a Samarco recebeu cinco multas do Ibama, no valor total de R$ 250 milhões, e também fez um acordo com o Ministério Público de Minas Gerais de pagar R$ 1 bilhão para a execução de medidas emergenciais; se compararmos, pelo alto, o lucro líquido da empresa apenas em 2014, com o valor acordado com o MP de Minas, e o que há para ser feito somente em “medidas emergenciais”, talvez se imponha a conclusão de que alguma coisa está errada nesse ressarcimento.
 
Por outro lado, não há como desconsiderar o fato comprovado de que no Brasil multas ambientais costumam não ser pagas e/ou são objeto de parcelamentos extremamente favoráveis aos responsáveis por lesões ao meio ambiente. Segundo o Tribunal de Contas da União, conforme matéria publicada em O Globo (18/11/2015), das multas aplicadas pelo Ibama de 2009 a 2013, apenas o valor correspondente a 1,76 % foi pago.

E a fiscalização efetiva? Vai muito bem, obrigado! Assim, por exemplo, o processo com um pedido de embargo na barragem de Fundão, em Mariana, ficou parado num setor do Ibama em Minas entre maio de 2014 e setembro de 2015! Sim, é a barragem que se rompeu em novembro!

Volto à indagação que originou este breve artigo: pode-se controlar a exploração econômica dos recursos naturais nesse modo de produção cuja lógica determinante é a primazia da mercadoria sobre o ser humano? 
 
*Professor adjunto aposentado da Faculdade de Direito da Uerj/Programa de Pós-Graduação, com mestrado e doutorado em Direito da Cidade

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