16/12/2015 - 13:00

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Qual o preço da Justiça?

16/12/2015 - 13:00

Qual o preço da Justiça?

Estudo de cientista político gaúcho traça diagnóstico dos gastos do Estado com o Judiciário brasileiro e aponta que, em termos proporcionais, nosso sistema de Justiça é possivelmente o mais caro do Ocidente. Para estudiosos, grande número de processos e má administração são as principais causas
 
CÁSSIA BITTAR
Morosidade, falta de juízes e problemas estruturais são, há anos, os motivos da maioria das reclamações de advogados em relação aos fóruns onde militam. Principalmente no Judiciário estadual. Foram esses, inclusive, os tópicos trabalhados pela campanha Mais Justiça, realizada pela OAB/RJ em 2014, que fez uma ponte entre os colegas e o Tribunal de Justiça (TJ) para buscar, junto à corte, possíveis soluções.

Frente a um cenário de lentidão da prestação jurisdicional, a conclusão automática que tende a ser feita é de que falta investimento no Poder Judiciário. Porém, o estudo Abrindo a caixa-preta: três décadas de reformas do sistema judicial do Brasil, parceria do cientista político Luciano da Ros, professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), com Matthew Taylor, da American University, de Washington (EUA), traz dados que quebram essa crença.

Na prévia da pesquisa – o trabalho completo só ficará pronto em 2016 –, publicada em agosto pelo Núcleo de Pesquisa em Sociologia Política Brasileira da Universidade Federal do Paraná (UFPR) e denominada O custo da Justiça no Brasil: uma análise exploratória, Ros compara as despesas do Brasil com as de outros países no que concerne ao sistema judiciário e constata que, proporcionalmente à renda, temos uma das Justiças mais caras do Ocidente.

Ros e Taylor utilizaram dados oficiais como o Justiça em números, relatório anual do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) considerando os diferentes ramos do Judiciário – estadual, federal, trabalhista, militar e eleitoral – e todos seus níveis hierárquicos –  da primeira instância ao Supremo Tribunal Federal (STF), incluindo o Conselho Nacional de Justiça (CNJ).

Segundo o texto, o orçamento global do Poder Judiciário totalizou R$ 62,3 bilhões em 2013, uma quantia maior do que o Produto Interno Bruto (PIB) de 12 estados brasileiros considerados individualmente de acordo com o orçamento anual do Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome.

“Considerando as taxas de câmbio correntes à época da coleta de dados, o orçamento anual per capita do Judiciário brasileiro é equivalente a cerca de US$ 130,32 ou € 94,23. Estes valores são superiores aos de todos os países da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), com exceção dos gastos de tribunais suíços (€ 122,1) e alemães (€ 103,5)”, expõem Ros e Taylor no texto.

O estudo mostra que, por habitante, a despesa é muito superior, em valores absolutos, à de países cuja renda média é mais elevada, como Suécia (€ 66,7), Holanda (€ 58,6), Itália (€ 50), Portugal (€ 43,2), Inglaterra (€ 42,2) e Espanha (€ 27), de acordo com dados da European Commission for the Efficiency of Justice (Cepej).
Comparando com países do mesmo continente, a discrepância se torna mais clara: os gastos em valores absolutos per capita com o Judiciário chileno (US$ 34,6), argentino (US$ 19,1) e colombiano (US$ 16,4) são várias vezes inferiores àqueles praticados do Brasil, segundo informações coletadas com o Centro de Estudios de Justicia de las Américas (Ceja).

“Está repercutindo muito a comparação com os países europeus, mas chama mais atenção a disparidade quando analisamos o custo do Judiciário do Brasil frente ao de países com a mesma renda”, ressalta Ros, observando que, apesar de se tratar de um diagnóstico inicial, o artigo mostra o tamanho do entrave: “A resposta é que é um problema enorme. Nós gastamos cinco, seis vezes mais do que a maioria dos países do mundo em critérios proporcionais. E, curiosamente, ninguém havia se dado conta disso”.
 
Maior custo é com pessoal
Um dado relevante – principalmente para quem milita na Justiça estadual do Rio de Janeiro, na qual a lentidão processual e a sobrecarga de trabalho apontam para carência de servidores nas comarcas, o que foi analisado também na campanha Mais Justiça – é que, segundo o estudo, a folha de pessoal é a principal causa do alto custo.

O dado vai ao encontro do último relatório Justiça em números, do CNJ, mostrando que os 27 tribunais estaduais arrecadaram, juntos, 38% da despesa de R$ 37,6 bilhões que tiveram em 2014, e que 89% dessas despesas seriam para recursos humanos. Na Justiça do Trabalho, o gasto com essa área passa para 93,5% da receita.
De acordo com a pesquisa da UFRGS, o número de magistrados – cerca de 16,5 mil, o equivalente a aproximadamente 8,2 juízes por 100 mil habitantes – não explica, por si, a disparidade nas despesas, pois não destoa dos outros países. Já os 412 mil servidores – que equivalem a 205 para cada 100 mil habitantes – representariam a maior relação entre os países considerados no estudo.

Frente ao grande número de processos – segundo o CNJ, o saldo em estoque em 2015 é de 71 milhões, representando uma taxa de congestionamento de 71,4%, – não é difícil acreditar que essa grande quantidade de servidores pode ser explicada pela terceirização informal das tarefas dos juízes, que lhes são passadas. “Embora os magistrados sejam individualmente responsáveis por mais casos novos por ano no Brasil do que em outras partes do mundo, o fato é que eles recebem o auxílio de uma força de trabalho significativamente maior para tanto”, diz o estudo.

“O que constatamos com esse diagnóstico inicial”, oberva Ros, “é que temos mais servidores, em muitos casos, mal remunerados, do que qualquer país do mundo. E qual a razão de termos tantos servidores? Porque temos muitos processos. É a única coisa paralela ao enorme custo. A pergunta que fica é: por que tantos casos?”.
 
Segundo ele, a resposta poderia estar na cultura da litigiosidade no Brasil e no número crescente das demandas: “Em 1991 tínhamos cerca de cinco milhões de novos casos ingressando no Poder Judiciário por ano. Atualmente, são 28 milhões, um aumento de pouco mais de 500% em 24 anos”, aponta, ressaltando que a própria formação acadêmica no Direito é voltada para a litigância: “A carreira de advogado no Brasil ainda é entendida na grande maioria das vezes como litigância: entrar com ações na Justiça ou defender ações que correm no Judiciário. As faculdades não se voltam a mostrar para os estudantes o papel do advogado na realização de contratos, mediação etc”.

A coordenadora do Centro de Pesquisa Jurídica Aplicada da Fundação Getulio Vargas de São Paulo, Luciana Gross Cunha, reforça: “As escolas de Direito precisam ficar atentas para não se tornarem litigantes. O advogado tem papel importante antes que o conflito se configure como tal. Ele presta uma assistência jurídica que muitas vezes acontece antes, para evitar, justamente, que haja o conflito”. Ela acredita que a própria ampliação dos cursos de Direito nas últimas décadas contribuiu para o que chamou de “conflitualidade”. ,

Presidente da Comissão de Mediação da Seccional, Samantha Pelajo afirma que, apesar de não terem o desafogo da Justiça como propósito principal, os meios alternativos de solução de conflitos podem contribuir diretamente para a redução do problema.

“Do ponto de vista prático, os acordos construídos em mediação são reconhecidamente mais adequados e efetivos às peculiaridades da controvérsia, além de infinitamente mais sustentáveis no tempo e do ponto de vista social. Se o Estado, por meio do Poder Judiciário, só for acionado quando as próprias pessoas não tiverem sido capazes de, em processo de mediação prévia, compor seus interesses, teremos a médio ou longo prazo uma redução expressiva no acervo de processos e, consequentemente, no custo do Judiciário nacional”, pondera ela, lembrando que a Ordem editou em março deste ano o Pacto Nacional da Advocacia pelos métodos extrajudiciais de resolução de conflitos.

Já Luciana Cunha observa que, em geral, o país não estimula formas alternativas de solução de conflito fora do Judiciário, o que seria o principal caminho para a redução do custo: “A maior parte dos mecanismos de conciliação está sendo abraçada pelo Judiciário. Temos que pensar em mais formas que não dependam dele, porque o Judiciário é finito, assim como o orçamento público”.

Para Luciano Da Ros, a estrutura atual de administração do Judiciário não favorece a redução inteligente dos custos: “O número de casos não vai parar de crescer se a Justiça continuar da forma atual. Hoje, o que se faz é reduzir salários de servidores ou, principalmente, contratar estagiários. Ou seja, contratar mais gente, principalmente mão de obra mais barata, porque o Judiciário não sabe o que fazer para reduzir a demanda”.

A contratação massiva de estagiários em substituição a serventuários também foi tratada na campanha da Seccional, em 2014: “Em um estágio, o estudante deveria aprender, de forma assistida, a rotina de sua futura profissão. O que está acontecendo é que dentro dos cartórios esses estagiários não estão aprendendo a advogar, e sim a fazer um trabalho que por lei é de responsabilidade do serventuário”, analisou o presidente da OAB/RJ, Felipe Santa Cruz, à época do lançamento.

Luciana Cunha atenta ainda para a falta de gestores nos tribunais: “Nós não temos, em nosso Judiciário, uma política de gestão focada em processo e procedimento, em logística. Se formos conferir tribunal por tribunal, muitas vezes eles mesmos não têm informação de quantos funcionários estão na ativa e quantos não estão. É um problema muito mais de gestão do que a cultura da litigiosidade”, acredita.

A professora da FGV São Paulo afirma ainda que o Judiciário “não se vê como prestador de serviço público”, o que poderia ser atribuído, segundo ela, a uma cultura que vê a Justiça como apartada do Estado. “O Brasil precisa dar mais atenção à carreira de gestor jurídico, que os Estados Unidos utilizam há mais de cem anos”, diz, informando que já há experiências com esses profissionais em São Paulo.

“É alguém que não necessariamente tem formação em Direito, mas sim em administração ou gestão pública. O principal enfoque é a gestão de processos, não judicialmente, mas na lógica da administração e da produção. É aí que a gente tem um enorme espaço para transformar a forma com que os tribunais são administrados. Porém, infelizmente, há resistência por parte dos juízes à entrada nesses espaços de quem não tenha formação jurídica”, explica.

Ros destaca também a remuneração dos magistrados como um impeditivo para que a Justiça, ao mesmo tempo em que se torne mais eficiente, não fique mais cara: “Para o número de processos hoje, teríamos que contratar mais juízes. Mas isso geraria um incremento monumental dos custos por conta da remuneração deles. Nos estados, por exemplo, um juiz começa a carreira ganhando 90% do salário de um ministro da mais alta corte, algo que não acontece em nenhum outro lugar do mundo. O que temos que discutir, portanto, é a forma como são escalonados esses salários, estabelecer um critério de transição na contratação de novos magistrados”, acredita.

O cientista político conclui que entre os motivos para o Brasil precisar de um sistema de Justiça mais caro do que o de países europeus ou norte-americanos está o seu legado de instituições autoritárias e “as abissais desigualdades” socioeconômicas: “O Judiciário recebeu autonomia orçamentária muito recentemente. Por enquanto, o que vemos é que ele tem pouca experiência no manejo de recursos, quanto mais em seu enxugamento”.

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