16/12/2015 - 13:21

COMPARTILHE

Tenebrosas transações

16/12/2015 - 13:21

Tenebrosas transações

Livro revela como a aliança entre o jogo do bicho e a ditadura militar possibilitou a profissionalização do crime organizado
 
MARCELO MOUTINHO
As origens do jogo do bicho remontam a 1892, quando o barão João Batista Vianna Drummond, conhecido personagem da época, criou um sistema de apostas para atrair mais gente a seu zoológico, que se encontrava em dificuldades financeiras. Mais de cem anos depois, aquele ingênuo modelo de arrecadação de recursos daria lugar a uma complexa organização. Metódica, ramificada. E criminosa.

“O bicho se impôs pela violência e pela corrupção”, afirmam os jornalistas Chico Otávio e Aloy Jupiara logo nos primeiros parágrafos do livro Os porões da contravenção. O subtítulo da obra, recém-lançada pela editora Record, é auto-explicativo: Jogo do bicho e ditadura militar: a história da aliança que profissionalizou o crime organizado.

Em 264 páginas, Chico e Aloy descrevem com minúcias um processo de sedimentação que inclui espionagem, suborno a ministros de tribunais superiores e sangue, muito sangue. Como observam, o bote começa a ser preparado em meados dos anos 1960, quando parte da sociedade brasileira lutava contra a ditadura. A máquina letal montada pelos generais em nome do combate à esquerda armada garantia verbas e equipamentos. “Mais do que isso, acesso livre a dados privados e poder de vida e morte sobre as pessoas”, ressaltam.

Com o desmonte dessa máquina, na esteira do arrefecimento do regime, boa parte dos agentes da repressão se frustrou. O bicho se tornaria, então, uma porta de oportunidades. O conhecimento adquirido nos porões era valioso para os comandantes do jogo, que viam no recrutamento da turma das masmorras uma possibilidade para assegurar proteção a seus negócios.

O trabalho dos jornalistas baseia-se em documentos de arquivos públicos e da Biblioteca do Exército, depoimentos de militares, ex-agentes, ex-presos políticos, sambistas, historiadores e cientistas políticos, além de consultas a acervos de jornais. Centrado nos três protagonistas da consolidação do bicho – Capitão Guimarães, Anísio Abraão David e Castor de Andrade –, o livro enumera, com esteio em rigorosa pesquisa, os muitos exemplos das tenebrosas transações entre o jogo e a caserna. 

O caso mais emblemático é o de Guimarães. Capitão-intendente do Exército, elogiado pelos superiores por ter largado as férias para reforçar as tropas no golpe contra João Goulart, ele logo se envolveu com a extorsão a contrabandistas. Ao ingressar no universo do bicho, Guimarães aplicou na estrutura do jogo o que havia aprendido nos quartéis. “Organização, centralização do poder e violência”, resumem Chico e Aloy.

Embora tenha enfrentado eventuais detenções, o militar se movimentou com certa tranquilidade pelas profundezas do regime. A ponto de protagonizar episódios como o que se deu em 22 de novembro de 1973. Ao saber que uma carga de seu esquema de extorsão fora interceptada por policiais, ele acionou a Polícia do Exército. “A cena era insólita: dois militares tentavam extorquir outros militares que extorquiam contrabandistas”, narram os autores.

Chico e Aloy contam também como Castor selecionou, na engrenagem da repressão, o time de  colaboradores do qual faziam parte Mauro Magalhães – ex-delegado da Ordem Política e Social, e titular da delegacia de Petrópolis, que serviu de base para a Casa da Morte – e o detetive Fernando Gargaglione, figura de destaque na ocultação de corpos de “desaparecidos” políticos.

Com relação a Anísio, o livro é contundente ao mostrar a importância da relação íntima com a ditadura para a construção do domínio sobre Nilópolis. E, claro, no organograma do bicho. “A concentração do jogo nas mãos de uma única família, apoiada na proteção política, de policiais e militares amigos, explica por que Anísio ficaria relativamente a salvo, podendo agir e ampliar seus negócios”, anotam os jornalistas. 

Apesar de mirar o período da ditatura, a pesquisa de Chico e Aloy evidencia que as conexões entre o bicho e o poder não findaram com a redemocratização. A estratégia para manter esses laços se dá, como o livro expõe, por intermédio do carnaval. A fundação da Liga Independente das Escolas de Samba (Liesa) no Rio de Janeiro, em 1984, sob o argumento de que cabia às agremiações a administração do desfile, seria o ponto de virada. “Em plena transição para a democracia, a Liga lhes representava uma fachada de legalidade, já que se tornavam interlocutores oficiais do poder público”, afirmam os autores. 

Os porões da contravenção revela igualmente que essa boa relação persistiu nos governos estaduais posteriores, como o de Moreira Franco – ele não só recebeu os bicheiros como comparou a visita ao Palácio Laranjeiras “à cerimônia de condecoração dos Beatles pela rainha da Inglaterra”. Nem mesmo os revezes sofridos com a sentença da então juíza Denise Frossard, que levou à prisão, em 1992, vários dos comandantes do bicho, e com a chamada Operação Furacão, três anos atrás, foram capazes de fazer balançar a estrutura montada com o auxílio do aparato militar pós-64. “A organização da cúpula, com sua hierarquia, controle de territórios e engrenagens de corrupção, segue intacta”, salientam Chico e Aloy.
 
Chico Otávio

A que você atribui o fato de os órgãos de repressão terem feito vista grossa aos movimentos dos banqueiros do bicho?


Chico – São dois momentos. No primeiro, o governo militar, até para se consolidar junto às camadas mais conservadoras que pediram os tanques nas ruas, adotou uma postura moralizadora que levou os bicheiros para as grades da Ilha Grande. Mas o tempo foi passando e a atitude mudou. O governo percebeu que era inútil enfrentar a máquina corrupta da contravenção, enraizada na estrutura policial. Tolerou num primeiro momento. Aderiu em seguida. No ocaso do regime, alguns militares, envolvidos na repressão e na tortura, sem perspectiva de futuro na tropa, viram no bicho a boia que os salvaria do naufrágio.  

A relativa aceitação do jogo do bicho não contradizia a tese muitas vezes defendida pelos militares, de que estando no poder garantiriam a moral e os bons costumes da sociedade? 

Chico –
Quando o fim estava próximo, com o povo nas ruas clamando por democracia, setores do poder dedicaram-se ao butim. Perderam o pudor. Enquanto os filhos do presidente Figueiredo desfilavam na escola de samba dominada por Anísio, e o Exército comprava panelas de Castor de Andrade, surgiram alguns escândalos não muito diferentes do que se vê hoje. Um deles, relatado no livro, descreve como o SNI salvou uma empresa de Castor, a mesma que fabricava as panelas. Vencida a esquerda armada, a luta ideológica parecia ter cedido espaço para a ambição pura e simples de poder. 
 
ALOY JUPIARA

‘O jogo não tem ideologia, quer estar perto do poder público’

Algo mudou, pós ditadura, quanto à aceitação dos banqueiros do bicho?  E na relação com o poder?
 

Aloy – A partir dos anos 1970, os bicheiros utilizaram as escolas de samba para garantir o poder sobre seus territórios de jogo e obter legitimidade junto à sociedade, posando de mecenas. Ideia errada, porque a contravenção é movida por interesses de negócios. Sempre por trás há o dinheiro sujo que a alimenta. Com a prisão dos bicheiros nos anos 1990, e depois a Operação Furacão, a opinião pública abriu os olhos para os crimes cometidos pelo bicho. Mas não de todo. No carnaval, ainda vemos bicheiros sendo aplaudidos na Avenida. Já a relação com o poder perdura porque, para sobreviver, o jogo busca corromper policiais, servidores, políticos, integrantes dos três poderes. É uma teia de corrupção para preservar negócios. Isso vale para o regime militar e para a democracia. É indiferente a partidos políticos. O jogo não tem ideologia. Quer estar sempre perto do poder público.

A Liesa, vendida como a autonomia dos sambistas, tornou as escolas ainda mais dependentes da contravenção, diz o livro. Por quê?

Aloy –
A Liesa foi fundada quando o Brasil se democratizava. Os bicheiros queriam se legitimar junto ao poder público e viram que o carnaval seria o canal. Não partiu de sambistas, mas de Castor e Capitão Guimarães, protegendo interesses do jogo. Afirmou-se que a ideia era defender a escolas e os sambistas. Mas os sambistas tradicionais perderam espaço na administração das escolas, na gestão de recursos (públicos, diga-se), na tomada de decisões sobre o destino de suas agremiações. A contravenção não tem interesse em restituir poder aos sambistas porque o que está em jogo é um grande negócio e sua influência política, dos quais os bicheiros não abrem mão.

Abrir WhatsApp