03/08/2018 - 20:59

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Ficha Limpa

03/08/2018 - 20:59

Ficha Limpa

Ficha Limpa

 

 

Uma lei como essa impediria a eleição de Nelson Mandela

 

Vânia Aieta*

 

Crucifiquem! - foi o brado de morte da multidão enfurecida que respondeu a Pilatos sobre o que fazer com Jesus. Comungamos dos esforços da sociedade no combate  aos desmandos que assolam o Brasil. Mas o inferno está cheio de boas intenções, e os advogados têm o dever de advertir sobre as ameaças constitucionais de uma iniciativa que, em nome da suposta "moralização da política", representa retrocesso ao trazer de volta ao ordenamento jurídico, em um país onde ainda se usam as instituições para perseguir adversários e proteger aliados dos que detêm o poder, uma regra que vigorou durante a ditadura.

 

Foi com a sem-cerimônia das ditaduras que a Emenda Constitucional nº 1 e a Lei Complementar nº 5  estabeleceram a cassação dos direitos políticos e a inelegibilidade por "vida pregressa" sem sentença condenatória com trânsito em julgado. A presunção da inocência é um dos princípios basilares do Estado de Direito, e o que a lei da ficha limpa pretende estabelecer é o "princípio da presunção da culpa", com uma irresponsável campanha de “demonização dos políticos”.

 

Uma lei como essa não teria permitido a eleição de Nelson Mandela, cuja "ficha suja" envolvia até condenação por "terrorismo". Vários importantes líderes sindicais brasileiros também possuem condenações, inclusive em segunda instância, por “crimes” que envolveram participações em lutas populares.

 

Os eleitores, quando votam em certos candidatos, o fazem por carência de uma formação política que o Estado deveria garantir com a melhoria do ensino e o combate à miséria; e as instâncias inferiores da magistratura não podem ser tidas como "detentoras do exclusivismo da compreensão do que seja moralidade", sem a necessária apreciação dos tribunais superiores, sob pena de violação de cláusula pétrea que estabelece a presunção de inocência.

 

Os adeptos do movimento Ficha Limpa costumam alegar que a presunção de inocência é de aplicação exclusiva ao Direito Penal. Porém, tal princípio também irradia seus efeitos para esferas processuais não criminais, quando se deflagram efeitos sancionadores nas outras disciplinas do Direito.

 

A vida pregressa do candidato deve ser avaliada pelo eleitor quando da votação. Se as escolhas não são as melhores, é o preço que a sociedade paga por suas mazelas. Querem melhorar o nível dos representantes? Eduquem o povo, dignificando as pessoas para libertá-las da submissão e do desejo de receberem migalhas nas eleições em troca do voto.

 

Mas, quanto a defender a inelegibilidade antes do trânsito em julgado, vale lembrar que o fato de uma opinião ser amplamente compartilhada não é evidência de que não seja absurda. Afinal, a voz do povo já colocou Cristo na cruz.

 

*Conselheira e presidente da Comissão de Direito Eleitoral da OAB/RJ. Doutora em Direito Constitucional pela PUC/SP e professora adjunta da Faculdade de Direito da Uerj.

 

 

 

Conquista que nasceu de uma iniciativa popular

 

Rogério Nascimento*

 

Condenados por órgãos judiciais colegiados por condutas que a lei considera crimes graves não serão mais elegíveis. Não é tudo quanto se espera de uma reforma política orientada para fortalecer a legitimidade da representação, mas não é pouco. Trata-se de conquista da sociedade. A inovação, materializada no PLC 58/90, teve origem em iniciativa popular, chegou ao Congresso com a força de mais de 2 milhões de assinaturas e significa, sobretudo, atender a exigência da Constituição que obriga a defesa do regime democrático.

 

Zelar pela legitimidade no processo de escolha de nossos representantes, tendo em conta, nas regras eleitorais, o dever de proteção da moralidade e a vida pregressa dos postulantes à candidatura é imperativo constitucional. A prática demonstra que, com a fragilidade dos partidos políticos e o voto em personalidades fortes, escolhidas para servirem de puxadores de legenda, a LC 64/90, na redação original, não oferecia proteção suficiente da legitimidade democrática.

 

Maior rigor nas condições de elegibilidade não colide com o princípio constitucional que proíbe a presunção de culpabilidade. Ninguém propôs ou espera que qualquer pessoa sofra pena sem decisão condenatória definitiva, mas os efeitos da condenação, previstos na lei penal, que não podem ser antecipados, não se confundem com a valoração, pela jurisdição eleitoral, para fins eleitorais, dos fatos reconhecidos na decisão judicial que condena. Aqui, não se discute sobre punição, o que está em jogo é cautela.

 

A prudência recomenda evitar que se candidate aquele cuja biografia se mostra incompatível com o senso mínimo de moralidade, tomando como base para isso a prova pré-constituída que a decisão condenatória da Justiça Comum traz. O dano para a democracia na eleição de um candidato com tal história, se verdadeira, é irreparável, por outro lado, se a decisão que o condenou for reformada depois, este, querendo, tem toda a vida para disputar outras eleições.  

 

Para saber se houve mudança ou engodo será preciso acompanhar os desdobramentos. Ainda há tempo para fazer valer a novas regras, pois sempre se entendeu que as condições de elegibilidade, afirmativas e negativas, devem ser verificadas no momento do pedido do registro de candidatura, e o projeto foi aprovado pelo Congresso antes da época que a lei prevê para as convenções partidárias escolherem candidatos para as próximas eleições.

 

*Procurador-regional da República e professor da Universidade Estácio de Sá.

 


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