03/08/2018 - 21:00

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'Há uma ânsia punitiva generalizada na sociedade'

03/08/2018 - 21:00

'Há uma ânsia punitiva generalizada na sociedade'

'Há uma ânsia punitiva generalizada na sociedade'

 

O subprocurador-geral da República Juarez Tavares é um crítico contundente da equação segundo a qual punições mais rigorosas redundam em redução da criminalidade. "O ato difuso da coação é incapaz de evitar que graves anomalias no relacionamento das pessoas, geradas por diversos fatores, se extravasem em atos infracionais", afirma ele, que é pós-doutor pela Universidade de Frankfurt, professor titular de Direito Penal da Uerj e autor de diversos livros, entre eles o reeditado Teoria do crime culposo (Lumen Juris). Na entrevista que segue, Tavares analisa a "ânsia punitiva" das sociedades, defende a progressão de pena e desmente a ideia de que, no Brasil, há liberalidade na execução penal.

 

 

Marcelo Moutinho

 

Há uma impressão generalizada, no Brasil, de que penas mais duras resultam em diminuição da criminalidade. Esta é uma falsa premissa?

 

A criminalidade está condicionada ao que se chama de processo criminalizador, pelo qual a conduta é elevada à categoria de crime por ato do legislador. Em face disso, sem se perceber, se cria a impressão de que, aumentando as penas, diminuirá a criminalidade. Ocorre, porém, que o crime, além de uma conotação jurídica, encerra um conflito social, que não pode ser solucionado por mero ato legislativo, ainda que daí decorra uma coação que, supostamente, poderia ser exercida, de modo difuso, a toda a sociedade, inclusive aos infratores. Essa é, contudo, uma falácia, porque o ato difuso de coação é incapaz de evitar que graves anomalias no relacionamento das pessoas, geradas por diversos fatores, se extravasem em atos infracionais. Pesquisas feitas por institutos de criminologia mostram que até a própria população, quando alertada sobre o conteúdo do processo criminalizador e a realidade dos conflitos, opta por soluções menos rigorosas, capazes de satisfazer a determinados escopos éticos e proporcionais ao fato praticado, sem que se tornem irracionais.

 

 

Parece haver, da mesma forma, uma ânsia punitiva na sociedade brasileira. Isso é uma exclusividade nossa ou uma marca global?

 

A ânsia punitiva é estimulada pela formação social repressiva, centrada na ética religiosa do pecado e de sua condenação, e pela regressão mal resolvida de distúrbios psicológicos individuais decorrentes do processo de opressão que se exerce contra a pessoa por força dos condicionamentos de classe aos quais está submetida. Se a pessoa mesma não pode resolver seus problemas de relacionamento ou de afirmação de individualidade, porque obstada por sua posição de classe, socorre-se da projeção: estende aos infratores, entre os quais todos, mais ou menos, se encontram, o ódio reprimido por não poder ser reconhecida como individualidade. De modo inverso, quando a própria pessoa detém o poder hegemônico, faz de seu ódio ao infrator a manifestação simbólica de sua preocupação em assegurar os privilégios de classe, que seriam, supostamente, por ele ameaçados. Enquanto sociedade desigual, capitalista, sedimentada na exploração do outro, haverá em todos os lugares a mesma ânsia punitiva, variando apenas os fundamentos para justificar as respectivas alterações legislativas e o grau de irracionalidade do sistema.

 

 

Neste sentido, a progressão de pena vem sendo bastante questionada, sobretudo com relação a uma avaliação supostamente pouco rigorosa do Judiciário quanto à concessão desse direito. Qual a sua opinião?

 

Há tempos se diz que o sistema penal se ocupa, antes de tudo, com aqueles que estão fora da prisão, sobre os quais exerce sua função disciplinar e coativa, para satisfazer interesses políticos de diversas ordens. Aos já condenados, o sistema reserva outra função: a de servirem de bode expiatório do próprio sistema, como aqueles que causam os distúrbios e que, portanto, devem ficar para sempre marginalizados. Ocorre que em um Estado de Direito não se podem admitir penas perpétuas, como é o caso do Brasil, que as proíbe na Constituição. Ademais, o preso, não importa quem seja, tem dignidade, que deve ser preservada, e também direitos, entre os quais o de progressão de regime. Esta, por sua vez, serve a um propósito de reinserção social, que se insere como política básica do próprio Estado. Há, na esfera pública brasileira, um quadro distorcido da realidade. Nossas prisões são extremamente perversas. Ao contrário do que se divulga, há muitas condenações no Brasil e muitos presos, hoje, na casa dos 500 mil, descontados os adolescentes submetidos a internações degradantes, o que está a indicar que não existe liberalidade na execução penal. Pelo contrário, a execução penal é a mais nítida expressão de autoritarismo e violação manifesta de direitos humanos, sendo até mesmo objeto de condenações internacionais.

 

 

Em artigos e palestras, o senhor questiona a própria legitimidade da imposição de pena por parte do Estado. Por que, como já afirmou, o Estado "não pode demonstrar essa legitimidade"?

 

Podemos, resumidamente, dizer que essa impossibilidade resulta do próprio modelo de incriminação, que objetiva eliminar conflitos, sem o poder. Não se pode legitimar o poder de punir, quando se sabe que esse poder é, em si, um instrumento de coação sem resultados práticos, que só produz consequências negativas às pessoas que, supostamente, quer proteger. Daí toda uma crítica no sentido minimalista ou mesmo abolicionista desse sistema.


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