03/08/2018 - 20:58

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Calote reiterado

03/08/2018 - 20:58

Calote reiterado

Calote reiterado

 

Mauro Roberto Gomes de Mattos e Gilberto Povina Cavalcanti*

 

O professor e advogado Saulo Ramos, em artigo publicado na imprensa paulista, sob o título Vergonha permanente, lembrou que, pela terceira vez, a emenda constitucional é usada para derrogar no tempo o pagamento dos precatórios, vale dizer dos títulos representativos de dívida publica derivada de condenação judicial.

 

Com efeito, assim foi com a regra transitória nascida da Carta de 1988 (ADCT, artigo 33), que fixou, para os pagamentos pendentes na data da promulgação da Constituição, oito anos de prazo. Mas os oito anos não bastaram, e 12 anos depois transformaram-se em dez pelo comando emanado do artigo 78, então agregado à Lex Legum.

 

Nos nossos dias, estamos assistindo à terceira e mais grave alteração gerada pela famigerada PEC nº 12, contra a qual a Ordem dos Advogados do Brasil acionou o radar cívico, que lhe permite, atenta aos movimentos contrários à cidadania, a defesa da sociedade civil e da ordem jurídica.

 

O cenário preocupa na razão direta dos interesses políticos em jogo, que tratam a norma constitucional como ferramenta de comércio. E, a partir daí, o vale tudo é praticado num ringue onde o cidadão é nocauteado seguidamente até perecer. A metáfora é verdadeira e, se trazida para os domínios dos precatórios alimentares, de uma crueldade revoltante.

 

Sem eufemismo e indo diretamente à ferida, é necessário precisar a etiologia da crise de desacato aos direitos do cidadão. Assim é que, ao longo do tempo, autoridades públicas, titulares de mandato, criaram e desenvolveram a cultura do 'calote dos precatórios'. A equação para os administradores públicos é simples: fazer no exercício do múnus público o que quiser, e que os lesados recorram ao Judiciário, pois as condenações cairão no vazio.

 

Assim procedendo, governadores e prefeitos, certos da impunidade, gastaram os recursos públicos sem atentar para a sagrada obrigação de acatamento às verbas consignadas ao Poder Judiciário para pagamentos dos precatórios.

 

A farra nacional, com a honrosa exceção de alguns mandatários de unidades federativas, traduziu-se, assim, na apropriação de verbas orçamentárias que não pertenciam ao Executivo, numa gastança que, ao invés de enquadrar os responsáveis no crime de responsabilidade e na prática de improbidade administrativa, vem premiá-los, seja pelo indulto que agride a consciência jurídica, seja pelo estímulo ao mau pagador, que passa a pagar como lhe aprouver.

 

No plano do absurdo - e dele não estamos distantes, no particular -, o que os senadores aprovaram levaria, se universalizada a regra ao calote generalizado, a um quadro no qual cada devedor paga como puder e, aos credores, as batatas...

 

A quebra da regra de precedência, os leilões reversos onde a agonia levará o credor a aceitar o inaceitável, são indicadores de que o primado constitucional é afrontado.

 

E as justificavas construídas na linha de desejo atentam contra a inteligência. Argumenta-se com a insuficiência dos meios de cumprimento das ordens judiciais e, em paradoxo flagrante, não são buscadas soluções que dêem suficiência a esses mesmos meios.

 

O não pagamento dos precatórios e o remanejamento das verbas para tanto consignadas tipificam os crimes de responsabilidade e de prevaricação, prática por sinal atentatória do princípio federativo, importa dizer daquele que consagra a separação dos poderes e que é protegido por cláusula pétrea.

 

Aos senadores e deputados, resta a busca de soluções criativas, entre elas a da compensação tributária e a de quitação de impostos.

 

À consciência jurídica da nação faz mal o argumento de que o pagamento dos precatórios privará os segmentos da saúde e da segurança pública de recursos, em detrimento do interesse social. Se o estigma social existe, não é afrontando o Poder Judiciário que o Poder Executivo resolverá o gravíssimo problema. Afinal, proclame-se em voz alta que a separação de poderes não traduz ameaça, mas sim garantia essencial da democracia.

 

O governo federal, que vem pagando os precatórios judiciais com pontualidade, não há de coonestar essa postura. E até por coerência, já que as obrigações de pagar contraídas no exterior estão sendo adimplidas sem mora.

 

A PEC do calote não pode ter vida longa, sob pena de que, como bem lembrou a ilustre professora Sandra Cavalcanti, a Praça dos Três Poderes passe a se chamar Praça do Calote e de que nela seja erguida "uma estátua em homenagem ao batedor de carteira".

 

*Advogados


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