17/11/2017 - 16:00

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Francisco Bosco – ensaísta: ‘Indivíduo não pode ser injustamente punido em nome de uma luta coletiva justa’

17/11/2017 - 16:00

Francisco Bosco – ensaísta: ‘Indivíduo não pode ser injustamente punido em nome de uma luta coletiva justa’

No cenário radicalizado deste 2017, o ensaísta Francisco Bosco busca o caminho da ponderação. A vítima tem sempre razão? – Lutas identitárias e o novo espaço público brasileiro, livro que acaba de lançar pela editora Todavia, traz uma acurada análise sobre temas como o feminismo, a luta antirracista e o “lugar de fala” a partir das mudanças ocorridas na esteira da popularização das redes sociais.

Bosco comenta a substituição da cordialidade pela lógica do confronto como traço constitutivo da identidade nacional, avalia os resultados das manifestações de junho de 2013 e reflete sobre a crescente intolerância – à direita e à esquerda – na arena política.

Ao destacar as redes sociais como espaço fundamental para as lutas identitárias, o autor critica uma prática cada vez mais comum: a tentativa de exclusão (e até certa hostilização) dos que se encontram “fora” daquele grupo social. “Um indivíduo não pode ser injustamente punido em nome de uma luta coletiva justa”, afirma.
 
MARCELO MOUTINHO

Ao analisar o “novo espaço público brasileiro”, o livro o relaciona a três fatores: as revoltas de 2013, que instauram uma cultura política “indócil” e de explicitação sistemática dos conflitos; o colapso da lógica da cordialidade ante as tensões da sociedade; e a emergência das redes sociais. Esse novo espaço ampliou as possibilidades de manifestação e, no entanto, parece suscitar uma lógica dicotômica radicalizada, com a formação de grupos fechados em pautas próprias e sem diálogo com a alteridade. Afinal, há hoje mais ou menos democracia do que antes?

Francisco Bosco – Há uma movimentação intensa da sociedade civil, tanto no sentido de disputar o imaginário coletivo quanto no de tentar furar o bloqueio das instituições políticas, notadamente o Legislativo, que precisa ser renovado. Essa movimentação, em princípio, aumenta a intensidade da democracia. Entretanto, ela é atravessada por ideários e práticas que apresentam traços de dogmatismo, autoritarismo, obscurantismo etc. 

No campo das lutas identitárias, de um lado as redes sociais digitais se revelaram o meio mais adequado para a luta por reconhecimento (irredutível a conquistas institucionais), pois operam em boa medida segundo a lógica do que a psicanálise chama de “imaginário”: a dimensão do narcisismo, que é o lugar do reconhecimento. Além disso, elas oferecem grande capacidade de organização coletiva. Os movimentos identitários têm conseguido que suas pautas ocupem largamente o espaço público, e isso é muito positivo, pois são, fundamentalmente, pautas justas.

Por outro lado, têm predominado as dinâmicas que a teoria social chama de bonding, isto é, estabelecimento de laços identificatórios com tendência à exclusão (e até certa hostilização) dos “de fora”. Dinâmicas aliás facilitadas pela lógica algorítmica das redes. Bonding é importante porque fortalece psicológica e organizacionalmente os coletivos. Por outro lado, a articulação desses laços grupais com determinadas premissas teóricas cria um mecanismo de compensações narcísicas posto em marcha muitas vezes às custas de injustiças contra indivíduos.

O livro objetiva ocupar um espaço entre a ação de desqualificar a priori qualquer pleito identitário e a atitude diametralmente oposta, que não raro resulta em injustiça contra indivíduos em nome de lutas coletivas justas. Num momento radicalizado como o que vive o Brasil, há lugar para o esforço reflexivo fora do domínio do dogma?

Bosco – Quando esse lugar é comprimido, aí é precisamente o momento em que se torna mais necessário ocupá-lo e expandi-lo. As lutas identitárias tiveram um momento de atuação forte nos EUA dos anos 1980/90. A partir da tomada de consciência de que a linguagem e o sistema de representação não são instâncias neutras, e sim lugares de transmissão de valores, portanto reprodutores das estruturas sociais, movimentos identitários transformaram a língua e o sistema de representação em um campo de batalha simbólica.

Foi nesse contexto que, como reação dos setores conservadores, surgiu a expressão “politicamente correto”. A ironia da expressão é capciosa, como observou [o crítico literário] Stanley Fish. Porque ela sugere que a disputa no campo da língua seja uma inutilidade ridícula (o mundo não mudaria ao se substituir “pretos” por “afroamericanos”). E também porque ela “acusa” grupos sociais de fazer política (como se grupos sociais devessem fazer outra coisa) em um campo pretensamente neutro e universal: a língua, o sistema de representação. Tudo isso são reações às tentativas de grupos historicamente desfavorecidos de tornar suas sociedades mais igualitárias, na distribuição da economia do reconhecimento e também no âmbito da justiça redistributiva.

Por outro lado, como você menciona, alguns militantes identitários aderem a premissas e métodos, respectivamente, falsos e injustos. Minha posição aqui é clara: essas condutas não são aceitáveis em nome de uma causa que é, repito, fundamentalmente justa. Meu livro então procura convencer uns de que as lutas identitárias são fundamentalmente justas; e outros de que esse reconhecimento não deve implicar a aceitação de determinadas práticas injustas.

A questão dos linchamentos, aliás, é um dos pontos centrais do livro, no qual você os identifica como um “enxame de abelhas, unidas por um ideal qualquer, que ataca moralmente um indivíduo identificado como tendo cometido crime contra esse ideal”. A escolha de bodes expiatórios ajuda ou atrapalha na luta por modificar estruturas historicamente construídas, como o machismo e o racismo?

Bosco – Sua pergunta estabelece dois níveis: um pragmático, outro teórico. Quanto ao primeiro, é questionável que as práticas autoritárias e irrefletidas de punição a indivíduos façam a causa avançar, pois tanto os membros dos próprios grupos as percebem como tais e desconfiam delas, quanto elas impedem o estabelecimento de estratégias de bridging, isto é, formação de alianças sociais mais amplas, que incluem sujeitos de fora desses grupos. No nível teórico, minha posição é a favor da perspectiva categórica, segundo a qual um indivíduo não pode ser injustamente punido em nome de uma luta coletiva justa. É essa espécie de utilitarismo que alguns ativistas identitários parecem abraçar.

Tocando em tema polêmico e bastante atual, você trata da questão do “lugar de fala”, apontando situações em que o grupo identitário busca desqualificar, de pronto, qualquer argumento originário de fora da órbita de sua condição. Quando assim empregado, observa no livro, o conceito de lugar de fala “prende o sujeito à sua posição particular; declara-o incapaz, em alguma medida, de transcendê-la”, anulando a vida moral do indivíduo “e, com isso, o que nela possa haver de solidariedade e justiça”. Por que isso seria, como afirma, um “tiro no próprio pé”? 

Bosco – Porque simplesmente anula a capacidade de cada sujeito de não se reduzir a seus interesses particulares. Para [o filósofo Immanuel] Kant, todo sujeito é tensionado, de um lado, por seus interesses particulares, e, de outro, pelos imperativos morais, para os quais o eu não pode defender seu interesse às custas da violação dos direitos do outro. A vida moral se situa precisamente na capacidade do sujeito de transcender seu interesse particular.

A noção de lugar de fala tem uma dimensão pertinente e muito bem-vinda: a ideia de que a vivência concreta permite o conhecimento de aspectos dos problemas sociais que a abordagem teórica não é capaz de perceber. Assim, é absolutamente justa a reivindicação de que os espaços de discussão sejam também ocupados por pessoas que falam a partir desse lugar irredutível da vivência.

Mas quando o lugar de fala é mobilizado no sentido de desqualificar a participação no debate público de pessoas de fora dos grupos identitários, como se elas estivessem condenadas a defender seu interesse particular, isso significa nada menos que abolir a vida moral. Na prática, expulsa do debate público as pessoas que consideram justas as lutas identitárias – a menos que elas concordem com essas lutas de forma incondicional.  

Como você mesmo diz no livro, há o risco de sofrer ataques e desqualificações ao fazer uma reflexão sobre o tema das lutas identitárias contemporâneas, esquadrinhando sua potência e suas contradições, na condição de homem branco, heterossexual, de classe alta. Receia virar mais um caso de linchamento, como os que comenta no estudo?

Bosco –
Pode ser que ocorram tentativas de interditar meus argumentos (prática comum à esquerda e à direita, embora seus sentidos não sejam os mesmos). Mas minha aposta é na capacidade das pessoas de transcenderem os seus próprios lugares de fala.
 

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