17/11/2017 - 16:18

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A indústria do mero aborrecimento

17/11/2017 - 16:18

A indústria do mero aborrecimento

MIGUEL BARRETO*
 
Os jurisdicionados vêm presenciando, estupefatos, a mudança de entendimentos dos tribunais em relação à concessão de indenizações por danos morais nos processos consumeristas. A referida mudança se destaca, tendo em vista que o número de reclamações aumentou significativamente nos últimos anos. A tendência natural seria que as condenações se tornassem mais severas, a fim de desestimular as condutas lesivas; nunca mais brandas.

Apenas para exemplificar, pesquisa realizada pela Fundação Getúlio Vargas (FGV, 2016) no segundo semestre de 2015 indica que 20% dos consumidores receberam alguma cobrança indevida por parte de operadoras de telefonia no período.

Levando em conta que existem 301.185.013 de linhas telefônicas no país (43.374.357 fixas e 257.810.656 móveis), sem considerar os serviços de distribuição de canais de televisão e internet, é certo que pelo menos 60.237.002 cidadãos suportaram algum tipo de cobrança ilegal. Não é difícil imaginar o lucro exorbitante.
A mesma pesquisa expõe que 11% dos clientes de instituições financeiras receberam alguma cobrança indevida no período pesquisado. Os dez maiores conglomerados bancários têm, juntos, 280.620.571 contas ativas (Bacen, 2015), sendo que 30.868.262 correntistas foram vítimas de desconto indevido em suas contas.

Diante da tormentosa questão, o TJ/RJ tem apresentado atualmente uma solução singular: negar a existência de indenização por dano moral em inúmeros casos, por meio da tese do mero aborrecimento cotidiano, isto é, a ideia de que aquela situação lesiva vivenciada, por ser comum, não ensejaria qualquer reparação; o consumidor teria de suportá-la como inerente à vida em sociedade.

Ao prosperar tal tese, afasta-se completamente do objetivo maior do Direito: a paz social. Tratar a lesão moral como uma não lesão por ser rotineira engessa qualquer possibilidade de mudança do quadro social. Permite a perpetuação da conduta lesiva no seio da sociedade sem qualquer perspectiva de correção. Naturaliza-se o dano, esquece-se o lesado; por fim, abandona-se a sociedade.

Em verdade, impõe-se a superação da tese do mero aborrecimento, pois o julgador, ao reparar adequadamente, por meio de justas indenizações, indica que determinada lesão moral não foi desprezada, gerando ao lesionador uma necessária revisão em sua conduta sob pena de ver seu patrimônio depauperar-se; ou seja, efetivamente responsabiliza-se.

Não se pode olvidar que a indenização por dano moral possui caráter punitivo-pedagógico; portanto, além de reparar a lesão, objetiva punir quem reincide no ato ilícito, prejudicando, muita das vezes, milhares de consumidores com a mesma prática abusiva.

As decisões denegatórias acabam por estimular, e não desestimular o ilícito, servindo o processo como mecanismo legitimador do enriquecimento sem causa das grandes empresas. Apesar do elevado número de processos judiciais, os maiores litigantes são aquelas que obtêm os maiores lucros. A Oi S/A teve lucro líquido de R$ 1,49 bilhão em 2013 (1ª mais acionada nos JECs nos últimos cinco anos); a Light S/A, de R$ 662,8 milhões em 2014 (3ª); a Ampla Energia e Serviços, de R$ 515 milhões em 2013 (7ª); o Banco Itaú, de R$ 23,35 bilhões em 2015 (5ª), o Banco Santander, de R$ 6,62 bilhões em 2015 (4ª); o Banco Bradesco, de R$ 17,2 bilhões em 2015 (6ª); a Caixa Econômica Federal, de R$ 7,2 bilhões em 2015; a Vivo, de R$ 3,4 bilhões em 2015 (12ª); e a Tim, de R$ 1,73 bilhão em 2015 (13ª).

Neste mesmo período, o Poder Judiciário priorizou a celeridade – vide a criação das metas de produtividade pelo Conselho Nacional de Justiça –, que acabou privilegiando o aspecto quantitativo em detrimento do aspecto qualitativo das decisões e viabilizou o surgimento da jurisprudência defensiva.

O Judiciário deve ser razoável no estabelecimento das metas de produtividade, mantendo um equilíbrio entre celeridade e justiça para que seja alcançado o objetivo máximo que é satisfazer o interesse social.
As soluções adotadas pelos tribunais para diminuir o crescente estoque de processos, seja pela adoção da jurisprudência defensiva processual ou material, são ilegais e injustas, e acabam propiciando um baixíssimo índice de confiança da população: apenas 24% (FGV, 2017). O fornecedor não punido preferirá repetir a conduta ofensiva e, assim, ensejará a propositura de mais processos. Ao deixar de observar o caráter sancionatório da indenização, a Justiça não promove a correção das distorções praticadas no mercado, colaborando para que os fornecedores, mesmo demandados em juízo, não venham a ser exemplarmente punidos.

Esse é o entendimento do Egrégio STJ (REsp. 1.152.541-RS), que definiu o método bifásico como critério de fixação do dano moral: “Na situação econômica do ofensor, manifestam-se as funções preventiva e punitiva da indenização por dano moral, pois, ao mesmo tempo em que se busca desestimular o autor do dano para a prática de novos fatos semelhantes, pune-se o responsável com maior ou menor rigor, conforme sua condição financeira”.

O Poder Judiciário, como último front de defesa da cidadania, tem papel decisivo para que sejam sanadas as deformidades mercadológicas. A fixação de valor ínfimo das indenizações implicará o simples provisionamento deste custo nos balanços das grandes corporações, não colaborando para a melhoria dos serviços prestados à população brasileira.

O consumidor merece ser tratado de forma digna, sendo certo que se não houver severa punição em face dos fornecedores não se transformará a realidade. Espera-se que a atual mentalidade seja modificada, a fim de possibilitar processo mais justo.

Nota-se também que as empresas mais acionadas são sempre as mesmas, o que comprova a falta de eficácia das condenações impostas. Por conta do desestímulo ocasionado pelas reiteradas sentenças de improcedência, o número de processos que envolviam questões relativas a dano moral caiu drasticamente nos últimos anos. Em 2014 foram distribuídos 2.628.644 processos em todo o país com esta temática; já em 2016, apenas 2.015.810, redução de 23%. No Estado do Rio de Janeiro a queda foi de 26%, de 843.095 em 2014 para 625.968 em 2016 (CNJ, 2017).

Enquanto os fornecedores não forem severamente punidos pelos seus atos contrários à dignidade do consumidor (causa do problema), obrigando-se a melhorar o serviço prestado, o número de danos de consumo não será reduzido (efeito do problema).

Se, no entanto, os tribunais revisarem seu posicionamento, todos ganharão. O Judiciário em credibilidade, pela contribuição direta para o aperfeiçoamento da sociedade que deixará de ser como é hodiernamente, repleta de microlesões quando considerada a dimensão do corpo social, mas gigantes lesões morais quando vistas pelo indivíduo lesionado; o lesado, que efetivamente será ressarcido; e por que não dizer, o lesionador, que terá a oportunidade de rever sua prática se tiver a perspicácia de ver a obrigação de indenizar pelo dano moral infligido não apenas como diminuição de patrimônio, mas um alerta para revisão da conduta.
 
*Advogado, mestre em Direitos Humanos, professor da Universidade Católica de Petrópolis e autor do livro 
A indústria do mero aborrecimento

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