10/10/2014 - 11:59

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ANDRÉA PACHÁ: ‘Enxergar a dor do outro me identifica com ele’

10/10/2014 - 11:59

ANDRÉA PACHÁ: ‘Enxergar a dor do outro me identifica com ele’

Roteirista e produtora de teatro antes de se tornar magistrada, Andréa Pachá conta em seu segundo livro, Segredo de justiça, através de crônicas sensíveis, um pouco mais do dia a dia à frente de uma vara de família. Após mais de 15 anos atuando na área, a autora explica que a obra é um complemento do sucesso editorial A vida não é justa, lançado em 2012. Responsável hoje pela 4ª Vara de Órfãos e Sucessões, ela diz ter encontrado na escrita ficcional, inspirada em situações reais que enfrentou, uma catarse para compreender seu lugar na solução de conflitos

AMANDA LOPES


Seu primeiro livro, A vida não é justa, teve ampla aceitação do público, vendendo 30 mil cópias. Foi o interesse das pessoas por essas histórias que estimulou o lançamento de Segredo de justiça? O que diferencia uma obra da outra?

Andréa Pachá – Segredo de Justiça é um complemento de A vida não é justa. Seguramente ele foi motivado pelo retorno dos leitores às primeiras crônicas, que esperavam outras histórias sobre a vida depois que o casamento termina – os filhos, o patrimônio, a velhice, por exemplo. Os quase 17 anos em uma vara de família fizeram de mim uma observadora privilegiada da alma humana: do nascimento à morte, passando pelos amores transitórios e definitivos, por casamentos, separações, filhos e netos. Assisti a inúmeros conflitos entre casais e familiares, e acreditei ser importante compartilhar a experiência. Em A vida não é justa, o foco era a tragédia do fim do amor. Nesse novo livro, abordo as relações familiares, as novas famílias, o envelhecimento e, ainda e sempre, os amores que terminam antes do fim idealizado. São inesgotáveis os dramas que nascem das relações amorosas.
 
No novo livro, a senhora diz que notou uma mudança nas relações humanas ao longo desses anos. O que mais chama a atenção?

Pachá –
Escrevi as histórias de uma maneira muito livre e sem me preocupar com uma ordem para contá-las. No entanto, embora involuntariamente, percebi que é possível, a partir das leituras, compreender as transformações tanto no comportamento afetivo e sexual das pessoas como nas mudanças profundas experimentadas pela sociedade nas duas últimas décadas. A rede de valores mudou profundamente. O fim das grandes ideologias, a globalização, a internet, o consumo, os tratamentos químicos para a impotência e a depressão. Todos esses fatores e mais uma série de direitos referentes à personalidade que emergiram nesses últimos anos trouxeram ganhos inestimáveis e perdas que ainda não conseguimos contabilizar. Fomos vitoriosos na afirmação da liberdade, no enfrentamento dos preconceitos; estamos fracassando na construção de vínculos afetivos e consistentes que enfrentem as grandes questões da alma, como a solidão, a velhice e a morte. O amor líquido, tão bem descrito por Bauman [Zygmunt Bauman, sociólogo polonês], parece encontrar sua tradução nos processos que chegam às varas de família.

Ao ler suas crônicas, percebemos que há ali um olhar compreensivo sobre as dores do outro. No exercício da magistratura, a senhora busca se aproximar da realidade de quem chega à sala de audiência? Facilita o trabalho analisar os casos sob uma perspectiva mais humana?

Pachá – Costumo dizer aos meus colegas, no curso de iniciação da Escola da Magistratura, que quem não gosta de gente ou não gosta de ouvir o outro e tentar compreendê-lo não deveria ser magistrado, especialmente em uma vara de família. Não concebo o exercício da minha profissão sem uma aproximação das partes. O volume de trabalho, muitas vezes, nos impede de ter um cuidado mais intenso com os que nos procuram, mas nunca deixei que as metas de produtividade se sobrepusessem aos seres humanos angustiados que esperam, da Justiça, uma solução nem sempre ideal para as suas dores. A justiça, a educação, a cultura e as artes são saberes da mesma raiz de humanidade. Infelizmente, a fragmentação do nosso tempo tem impedido que a nossa formação seja integral e que nos percebamos responsáveis pela afirmação dos valores humanos. Enxergar a dor do outro me identifica com ele e a comunicação é muito mais facilitada.

Logo na apresentação do livro, a senhora diz estar revelando o segredo de sua própria experiência. Como foi estar diante, e de certa forma participar de maneira decisiva, de momentos tão íntimos e quase sempre difíceis para aquelas pessoas que atendeu?

Pachá – Todas as histórias são ficção. Todos os conflitos, no entanto, existiram de alguma forma, nas quase 20 mil audiências que realizei em 20 anos de magistratura. Antes de ser juíza, fui roteirista e produtora de teatro. Acredito que esse olhar da dramaturgia foi o que me levou a contar as histórias. No início, imaginei que pudesse narrá-las na terceira pessoa. Intuí que o que interessaria aos leitores seriam os dramas amorosos e familiares. Durante o processo da escrita, entendi que o que interessava, de fato, era a compreensão de como pensa e o que sente a pessoa que vai decidir os conflitos. Mudei, então, a narrativa para a primeira pessoa. Poder escrever sobre as minhas dúvidas, angústias, fragilidades, imparcialidades foi quase uma catarse para compreender qual era o meu lugar na solução de conflitos tão densos e tão humanos. Estar diante da intimidade de tantas pessoas, muitas vezes no momento limite das suas vidas, me fez querer ser uma juíza melhor todos os dias.

Qual a influência que a experiência na vara de família trouxe para sua carreira como magistrada, especialmente em sua nova função, na 4ª Vara de Órfãos e Sucessões?
 
Pachá – Estou à frente desta vara há pouco menos de dois anos. De alguma forma, continuo lidando com os conflitos familiares. O que não se resolve durante a vida vira conflito quase sem solução depois da morte. Tudo o que pude aprender a assimilar na vara de família tem sido muito útil nesse momento. Tenho conseguido utilizar técnicas de conciliação e mediação para compor acordos sobre heranças em processos que já duram mais de uma década. Tenho conseguido trabalhar nos processos de interdição, com o olhar mais voltado para a autonomia que se deve garantir ao idoso ou ao doente mental. Parece que ter me removido para uma vara com essa competência foi a maneira que encontrei de fechar um ciclo, antes do novo degrau para o Tribunal de Justiça. E percebo que a vida funciona mesmo em ciclos. Nem sempre há recompensas para o bem que fazemos e nem sempre somos punidos pelo mal que praticamos. Mas é muito natural notar que, na maioria das vezes, nas relações familiares, o que se planta de afeto com os filhos e netos, se colhe na velhice em cuidado e respeito.

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