10/10/2014 - 12:50

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Toda liberdade é íngreme

10/10/2014 - 12:50

Toda liberdade é íngreme

História, documentos e fotos inéditos de Sobral Pinto estão reunidos no livro do historiador Márcio Scalercio, com versões impressa e em ebook disponibilizadas gratuitamente
 
VITOR FRAGA
“Não existe democracia à brasileira. Existe é peru à brasileira”. A afirmação – em resposta a um militar que dizia ser a ditadura nos anos 1960 uma “democracia à brasileira” – é uma das frases de Sobral Pinto que se tornaram, com o tempo, quase tão célebres quanto seu próprio autor. As muitas histórias da biografia do advogado que virou símbolo para a advocacia e a sociedade no Século 20 ganharam uma nova roupagem com a obra Heráclito Fontoura Sobral Pinto: toda liberdade é íngreme, do historiador Márcio Scalercio.

O livro, lançado no dia 16 de setembro no Centro Cultural Justiça Federal (CCJF), no Rio de Janeiro, é ilustrado por 60 imagens, entre fotos inéditas e documentos, que remontam ao período em que o advogado foi monitorado pelos órgãos de repressão. A edição luxuosa poderia contrastar com a conhecida austeridade de Sobral, não fosse o fato de ser distribuída gratuitamente – e, ainda, ter o conteúdo em e-book disponibilizado na internet para download, também sem custo.

“Se você percorrer o Brasil, vai perceber que existem escolas, ruas, praças com nome de Sobral Pinto. Existe ainda a comenda da Ordem dos Advogados com o seu nome. Pela importância, por seu papel histórico durante os governos autoritários do Vargas e depois durante a ditadura, ele mereceu a alcunha de Advogado do Brasil. É uma figura que merece sempre ser relembrada”, afirma Scalercio. Segundo ele, o livro aborda todas as dimensões da personalidade do advogado. “Sobral não era apenas um criminalista. Atuava em causas diversas porque precisava ganhar dinheiro, por não ser um homem rico, embora fosse despreocupado em relação a isso. Teve um papel muito importante na OAB, foi conselheiro da Ordem, presidente do IAB, e era uma figura muito atuante. Mesmo quando a diretoria da entidade era contrária à sua posição, ele seguia em frente, e apresentava suas sugestões de maneira enfática”, acrescenta o historiador. 

Scalercio observa que, para se ter uma ideia “do tamanho do perfil de Sobral”, basta citar o fato de que ele era às vezes reconhecido nas ruas e aplaudido espontaneamente. “Quando parava num bar para tomar um café, ou num restaurante para comer, as pessoas o reconheciam, levantavam e batiam palmas. Além de ter sido um cidadão extraordinário, fez muito pelo prestígio da advocacia. No livro, falamos também bastante da vida familiar, já que ele teve sete filhos, morou em um casarão no bairro das Laranjeiras, tinha grande dificuldade em prover o sustento da família”, relata. O autor lembra que o desprendimento material de Sobral levava seus amigos a interferir para ajudar. “Tinha conhecidos importantes que faziam de tudo para lhe conseguir causas e o obrigavam a cobrar, porque ele tinha o hábito, quando trabalhava na defesa de presos políticos ou pessoas sem posses, de não pedir um tostão. E aí entrava outra dimensão de Sobral, a de católico. Era um cristão devoto, um católico conservador muito arraigado, e achava que era sua obrigação prestar esse tipo de serviço”. 

Para o autor, a distribuição gratuita do livro é importante para ajudar a difundir as histórias de Sobral. “O livro teve um conjunto de patrocinadores e, com ajuda do governo federal e também do Estado de São Paulo, foi todo custeado. Dentro desse espírito, está sendo distribuído gratuitamente, e também pode ser baixado via internet, graças à FGV Editora, que criou o ebook. Assim, pessoas em todo o país poderão saber mais não só sobre a história desse grande advogado e cidadão, mas também alguma coisa sobre o que foi aquele período da República em que ele viveu”, completa. Editada pela Insight Comunicação, a obra de 336 páginas foi fundamentada em dezenas de entrevistas e documentos. A FGV Editora disponibiliza o ebook para download gratuito em seu site www.editora.fgv.br. A seguir, alguns trechos:

Senso de justiça desde a infância

“Um dia, ao sair com a mãe até o quintal para apreciar a mangueira, Sobral testemunhou que um cidadão do lugarejo [Porto Novo do Cunha, em Minas Gerais], que trabalhava como carroceiro, era levado preso, e os guardas o cobriam de pancadas. O carroceiro estava sendo detido porque, numa rixa, assassinara um jagunço que trabalhava para um grande mandatário estabelecido no lado do estado do Rio de Janeiro. Heráclito, ao ver o carroceiro espancado, começou a bradar para os policiais, acusando-os de covardia e intimando-os a pararem de espancar o cidadão. Os policiais pararam para olhar. Quando perceberam que quem gritava com eles era apenas um fedelho, voltaram a arrastar o rapaz e espancá-lo. No frigir dos ovos, não havia muito que o garoto Heráclito pudesse fazer. Porém, já com idade avançada, lembrava que aquele episódio do carroceiro covardemente espancado despertara-lhe um agudo senso de justiça.”
 
Desapego ao dinheiro.
“Sobral não ligava para o dinheiro e, segundo depoimento unânime daqueles que o conheceram, na verdade ligava menos do que devia. Afinal de contas, chegou a ter sob sua responsabilidade uma família numerosa, composta por esposa, sete filhos, a sogra, a irmã mais velha e uma cunhada. Mas o advogado sabia da penúria que muitas vezes envolvia os perseguidos e seus familiares. Empregos eram perdidos, amigos se afastavam, temerosos, os meios de subsistência desapareciam. Que pagassem quando pudessem, que pagassem depois, sendo que o depois bem podia se converter em nunca pagar; até porque o advogado, com muita frequência, esquecia de cobrar. Gilda, a filha caçula, testemunhou que, após o seu falecimento, ao examinarem os livros da biblioteca, encontraram várias notas de mil cruzeiros dentro dos volumes. Imaginaram que Sobral, às vezes, ao receber o dinheiro, colocava-o dentro de um livro e acabava esquecendo. Ao vasculharem as gavetas, depararam com vários cheques assinados, que jamais foram descontados”.
 
Futebol ‘estilo Sobral’

“O advogado apreciava música clássica e gostava muito de futebol. Chegara a dar suas botinadas nos campos de pelada, e sua filha Gilda escutou-o contando que, durante algum tempo, pensara seriamente em profissionalizar-se como jogador. Conclui-se, portanto, que o advogado se achava um craque. De vez em quando, ao tirar uns dias de descanso em sítios de amigos, podia ser visto ainda participando de animadas peladas, só que exibindo um já bem-acabado ‘estilo Sobral Pinto’ na indumentária: corria atrás da bola sem dispensar a gravata, o paletó e os sapatos”.
 
Católico fervoroso
“Sobral era um católico nascido numa família mineira intensamente devota. Sua fé pessoal fora lapidada nos tempos colegiais pelas disciplinas dos jesuítas de Nova Friburgo. Foi um caminho que se assemelhou aos trilhos que perfazem uma reta, em que os engenheiros não podem admitir um mínimo desvio. Viveu intensamente sua vida religiosa, que se tornou um complemento indispensável de sua personalidade. E não professava uma fé reclusa, privada, que buscava a intimidade. Todas as vezes em que surgia uma oportunidade, proclamava-a aos quatro ventos, bradava-a nas três mídias e desfiava parágrafos e mais parágrafos sobre o assunto em suas milhares de cartas”.
 
Atuação na Ordem
“No ano de 1974, durante o debate para a pauta da 5ª Conferência Nacional dos Advogados, promovida pela OAB, Sobral retirou-se do evento alegando que estavam, ‘por debaixo dos panos’, pondo na pauta de discussão os temas do divórcio e dos direitos dos filhos ilegítimos. Segundo Sobral, a temática do evento era O advogado e os direitos do homem e, ‘ao invés de os juristas se aterem ao tema central da conferência, apresentaram teses que são um atentado contra a família cristã’”.
 
O ‘cidadão agoniado’
“Sobral era incisivo em suas convicções, mesmo sabendo que não havia como conter os rumos do mundo, da sociedade brasileira, do América, do cinema ou até da sua própria família. Sua filha Ruth, advogada como ele, participou da redação da Lei do Divórcio. Ruth, que era solteira, uniu-se a um homem que era desquitado. Outra filha, a caçula Gilda, que se tornou psicanalista, também passou por um processo de separação. [...] Dentro e fora de casa, Sobral defendia suas ideias. O mundo poderia seguir outro rumo, mas isso jamais lhe importou. Seus argumentos, às vezes, poderiam soar para aqueles que dele discordavam como retrógrados, antiquados, até mesmo antipáticos. Nada disso o demovia. A única chance de mudar de ideia seria se, por uma boa razão, decidisse proceder à reformulação na abordagem de alguns dos grandes princípios que o norteavam; situação, aliás, muito rara. Seus críticos podiam sentir-se aborrecidos com sua coerência, com os princípios, mas, convenhamos, era precisamente daí que provinham os contornos mais poderosos que sustinham de pé suas imensas qualidades”.
 
O caso dos nove chineses
“Os chineses em questão eram representantes oficiais de seu país (...) E cá estavam eles trabalhando (...) Mas aí veio o golpe de 1º de abril. Dois dias depois, todos foram presos, debaixo de um grande aparato policial, com ampla cobertura da mídia, e tratados a socos e pontapés. Após terem sido condenados em primeira instância à pena de dez anos de prisão, antes mesmo da apelação em instância superior, os chineses foram expulsos do país. Técio Lins e Silva resume o episódio: ‘Lembro da defesa do Sobral. Ele salvou a vida dos chineses, impedindo a tortura, os maus-tratos. Ele denunciava as condições desumanas da prisão, da umidade daquelas cadeias’”.

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