16/03/2015 - 12:14

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Daniel Sarmento: ‘Modelo de financiamento [eleitoral] compromete a igualdade e a democracia’

16/03/2015 - 12:14

Daniel Sarmento: ‘Modelo de financiamento [eleitoral] compromete a igualdade e a democracia’

Após quase duas décadas atuando como procurador regional da República, Daniel Sarmento decidiu deixar o Ministério Público Federal (MPF) e exercer a advocacia, atraído pelo dinamismo e pela possibilidade de um bom retorno econômico. Um dos autores da representação da OAB que resultou em ação no Supremo contra o financiamento de campanhas eleitorais por empresas privadas, Sarmento acha que a Operação Lava Jato é prova eloquente dos problemas do atual sistema. E diz que já passou da hora de o ministro do STF Gilmar Mendes devolver os autos para conclusão do julgamento.

PATRÍCIA NOLASCO


Por que deixar o MPF após quase 20 anos? O que o atrai para o exercício da advocacia? 
Daniel Sarmento – Eu fui muito feliz e realizado no Ministério Público Federal durante a maior parte do tempo. Pude trabalhar com questões interessantes, como proteção de direitos humanos e defesa de minorias, e aprendi muito na instituição. Mas queria ter mais liberdade, especialmente para poder atuar nas grandes questões constitucionais do país, e acho que fora de uma função pública, na advocacia, terei condições de fazer mais pelas causas em que acredito, neste momento da minha vida. Por isso, me exonerei do cargo, em dezembro do ano passado. A advocacia também me atrai pelo dinamismo e pela possibilidade de bom retorno econômico. 

Quero dar pareceres – já estou trabalhando em alguns casos – e atuar em processos judiciais e arbitragens que envolvam Direito Constitucional, que é a minha área. Sou professor dessa matéria na Uerj. Pretendo também exercer a advocacia pro bono em causas ligadas a direitos fundamentais, com foco especial na atuação no Supremo Tribunal Federal.

O ministro do STF Gilmar Mendes está, desde abril do ano passado, analisando a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI 4.650) movida pelo Conselho Federal da OAB para alterar a legislação eleitoral e proibir o financiamento de campanhas por empresas privadas. Havia seis votos a favor quando Gilmar pediu vistas. O quadro de corrupção trazido a público com a Operação Lava Jato reforça a urgência de concluir essa votação?
 
Sarmento – A ação proposta pela OAB contra o financiamento resultou de uma representação que elaborei, juntamente com o Cláudio Pereira de Souza Neto, secretário-geral do Conselho Federal. Ela se baseia em duas ideias principais. Em primeiro lugar, o atual modelo de financiamento compromete a igualdade e a democracia, pois aumenta excessivamente a influência do poder econômico sobre as eleições. A democracia se funda na igualdade política entre as pessoas, e o modelo vigente contraria gravemente este princípio, ao aumentar o poder dos titulares do poder econômico nas eleições, em detrimento do restante da população.  Além disso, o regime atual fomenta a corrupção, criando relações espúrias entre políticos e empresas doadoras. A Operação Lava Jato é mais uma prova eloquente deste último problema, pois revelou que uma das maneiras de que empreiteiras se valem para corromper autoridades é por meio da doação oficial a partidos.

A questão é muito grave e importante para o país, e dificilmente uma solução para o problema virá do próprio sistema político. Afinal, os parlamentares foram eleitos de acordo com este sistema e a maioria não tem interesse na sua alteração. A maior parte da população é contra o financiamento de campanhas por empresas, como pesquisas de opinião já revelaram, mas há um descompasso entre a vontade do povo e a atuação das instâncias representativas. Este é um caso em que a atuação do STF é fundamental para proteger os pressupostos do funcionamento da própria democracia. E a sociedade espera que a decisão do Supremo venha logo, com a antecedência necessária para que possa valer para as eleições de 2016.

Tenho muito respeito e admiração intelectual pelo ministro Gilmar – certamente um dos maiores constitucionalistas do país –, mas acho que já passou a hora da devolução dos autos. Pelas manifestações públicas que já fez sobre o tema, tenho certeza de que ele já formou o seu convencimento sobre a questão, e o pedido de vistas não pode funcionar como um mecanismo de veto às deliberações do Supremo. 

A situação degradante do sistema prisional, assinalada pelo ministro da Justiça, também recebeu críticas suas e a informação de que a Clínica de Direitos Fundamentais da Faculdade de Direito da Uerj está trabalhando num processo para ingresso no STF. É possível adiantar o que será requerido?

Sarmento – As prisões brasileiras são verdadeiras “masmorras medievais”, como reconheceu o ministro da Justiça. São infernos dantescos, em que há superlotação, tortura, violência sexual, instalações mais que precárias e tudo isto em absoluta contrariedade à Constituição, a tratados internacionais ratificados pelo país e à Lei de Execução Penal. E o problema vem se agravando, com o aumento exponencial da população carcerária, que mais do que dobra a cada década. Quando a Carta foi editada, o Brasil tinha menos de 90 mil presos, hoje já tem mais de 570 mil.  O déficit é de mais de 200 mil vagas – sem contar os mais de 370 mil mandados de prisão “em aberto”. E mais de 40% dos presos são provisórios. Esse sistema, como todos sabem, é altamente seletivo: só pobres vão para a cadeia.
 
Além das gravíssimas violações à dignidade dos presos, o quadro também agrava os problemas da segurança pública, em detrimento de toda a população. As prisões não ressocializam ninguém, a taxa de reincidência é altíssima e os presos saem do cárcere muito mais perigosos do que entraram. O preconceito geral existente na sociedade contra os presos torna o tema impopular no sistema político. Todos sabem da gravidade do problema – Executivo, Legislativo e Judiciário –, mas as providências necessárias não são tomadas. Penso que a atuação do STF no tema é fundamental, como vários ministros da corte vêm enfatizando, como Luis Roberto Barroso e Gilmar Mendes. Na Uerj, nós criamos uma Clínica de Direitos Fundamentais, voltada para a atuação em questões de direitos humanos de grande relevo, que eu coordeno e é composta por outros professores e alunos da pós-graduação e graduação. Estamos trabalhando com o tema prisional, em parceria com outras instituições. Prefiro não antecipar pedidos e fundamentos.
 
O senhor produziu pareceres jurídicos sobre questões sensíveis, como a PEC que transfere para o Congresso a decisão sobre demarcação de terras indígenas e a ADI 3239, que poderá gerar mudanças na titulação das terras quilombolas. Qual a sua posição e a expectativa acerca dessas propostas?
 
Sarmento – Realmente eu dei parecer nestes dois casos no STF, a pedido da Procuradoria Geral da República (PGR). A PEC 215 transfere do Executivo para o Congresso a decisão sobre demarcação de terras indígenas. A decisão, que hoje é técnica, iria se tornar política e discricionária. A proteção dos direitos de uma minoria passaria a depender da vontade da maioria, o que é um absoluto contrassenso.  Considerando a força da bancada ruralista, aprovada esta emenda nunca mais uma terra indígena seria demarcada no país.

No caso dos quilombos, trata-se de uma ação direta de inconstitucionalidade (ADI 3.887), proposta pelo DEM, que, se acolhida, impedirá o reconhecimento do direito destes grupos à propriedade das terras que ocupam tradicionalmente, o que é garantido pela Constituição (art. 68 do ADCT). A garantia do direito à terra dos índios e quilombolas é vital para que estes grupos possam continuar existindo, e vivendo de acordo com a sua cultura e tradições. Portanto, não se trata apenas de implementar a justiça fundiária e social perseguida pela Constituição. Mais que isso, cuida-se de assegurar a preservação e florescimento de grupos étnicos, que, sem as suas terras, tendem a desaparecer. Trata-se de preservar direitos fundamentais de minorias excluídas, mas também de salvaguardar, para as presentes e futuras gerações de brasileiros, culturas e modos de vida que integram o nosso patrimônio imaterial, e com os quais a sociedade tem muito a aprender. Acredito que o STF estará à altura do seu papel de guardião da Constituição, e não permitirá os graves atentados a direitos fundamentais e ao interesse nacional que resultariam da aprovação da PEC 215, ou do acolhimento da ADI 3.887.

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