16/03/2015 - 13:02

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Direito em cena

16/03/2015 - 13:02

Direito em cena

 
Livros que tratam de questões jurídicas em textos de William Shakespeare reforçam a longevidade dos personagens e situações da obra do dramaturgo inglês

VITOR FRAGA

Ano que vem, serão completados 400 anos da morte do dramaturgo William Shakespeare. Na Inglaterra, diversos eventos estão sendo planejados para marcar a data, dentro do projeto Shakespeare 400, coordenado pelo London Shakespeare Centre e pelo King’s College London. Apesar da grande distância temporal, os personagens e as situações criadas por Shakespeare continuam atraindo atores e público até hoje, indo muito além da Inglaterra do final do Século 16 e início do Século 17. Essa atração talvez se deva, entre outros fatores, à proximidade do texto shakespeariano com a vida cotidiana – o que se aplica, por exemplo, ao Direito e às questões jurídicas.

No Brasil, os escritos têm despertado interesse na área. Em 2013, o professor José Roberto de Castro Neves publicou o livro Medida por medida: O Direito em Shakespeare; e ano passado foi lançada em português a obra Mil vezes mais justo: O que as peças de Shakespeare nos ensinam sobre a Justiça, do professor da Universidade de Nova York Kenji Yoshino (o original em inglês é de 2011). Para advogados e especialistas, as questões jurídicas mencionadas nas peças shakespearianas ainda são atuais e podem contribuir para a formação dos profissionais na área.

Para o autor de Medida por medida, há séculos o Direito e a arte se influenciam mutuamente. “O Direito foi claramente influenciado por Ésquilo e Sófocles, na Orestéia e em A trilogia tebana (com Édipo rei e Antígona); por Shakespeare, em peças como O mercador de Veneza e Medida por medida; e por Harper Lee, em O sol é para todos (To kill a mockingbird, no original), apenas para dar poucos e eloquentes exemplos. Da mesma forma, a sociedade aprendeu a gostar e a odiar os advogados e juízes por conta dessas mesmas histórias”, afirma Castro Neves, que é professor de Direito Civil da PUC-Rio. 

Segundo ele, Shakespeare construiu personagens essencialmente humanos, o que ajudaria a explicar seu longevo sucesso. “Os homens do Direito são vistos, muitas vezes, sob estereótipos. Shakespeare, entretanto, é um grande destruidor de estereótipos. Seus personagens não são totalmente bons ou ruins, mas humanos. Nas peças históricas, como Ricardo II e Henrique VI, o mesmo Direito pode ser invocado para todos os fins. Shakespeare, antes de nos levar para um ou outro lado, nos leva a refletir”, analisa. 

Castro Neves conta que sempre foi fascinado pelo Bardo – como o dramaturgo é chamado pelos ingleses –, encontrando frequentemente temas jurídicos em seus textos. “Descobri que ele escrevia também pensando nos advogados e nos estudantes de Direito, que compunham parcela importante de seu público. Na maior parte das peças, havia, ao menos, um julgamento. Na época de Shakespeare, as pessoas assistiam aos julgamentos públicos e comentavam as conclusões dos tribunais. Natural, portanto, que as peças tratassem de temas jurídicos”, explica o professor. Suas anotações das passagens específicas na obra para eventuais citações acabaram por transformar-se em livro.

Na opinião do professor do Departamento de Direito Penal da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo Pierpaolo Cruz Bottini, a presença de questões da área em obras de arte não surpreende. “O Direito e os debates jurídicos são fruto da sociedade, dos problemas que existem nas relações humanas. Portanto, é natural que as manifestações culturais que tratem de relações de poder ou familiares, ou da mistura delas, tangenciem o tema. Mais do que apresentar a maneira como a sociedade enxerga o mundo jurídico, as obras de Shakespeare discorrem com precisão sobre os conflitos pessoais e sociais que são a base, a razão de ser do Direito”, diz.

Já o jornalista, dramaturgo e diretor executivo do Grupo Nós do Morro, Luiz Paulo Corrêa e Castro, responsável pelas adaptações em montagens do grupo que tiveram como foco obras de Shakespeare, o Bardo foi um homem de seu tempo. “Como filósofos, cientistas e pensadores, Shakespeare também produzia obras que mudavam os parâmetros históricos e culturais e acabavam por influenciar também o trabalho dos artistas. Ao tocar fundo na alma humana, criando obras que falam de amor, ódio, paixão, traição, relações intrafamiliares, relações de estado, Shakespeare cria uma obra intemporal, que transcende a sua época”, afirma.

Para Corrêa e Castro, a obra shakespeariana tem, entre outras,  uma preocupação com o estabelecimento das relações entre o Estado e os cidadãos. “Naquela época, claro, a figura do advogado não era tão valiosa para a manutenção da democracia como hoje em dia, já que os estados eram autocráticos, absolutistas. O que seria das histórias de Lear, Hamlet, Otelo se os seus protagonistas tivessem se valido dos serviços de um profissional do Direito antes de consumarem seus atos ou tomarem suas decisões que desencadeiam todas as peripécias e acontecimentos trágicos contidos nos mesmos?”, questiona.

Entre os diversos trechos de obras, Castro Neves destaca passagem da peça Henrique VI, parte II, uma das citações mais conhecidas. “A famosa exclamação ‘A primeira coisa que temos a fazer é matar todos os advogados’ é, a rigor, um elogio aos advogados, e não uma crítica, como se poderia entender, se for repetida fora de seu contexto”. Para o professor, a frase demonstra na verdade o apreço de Shakespeare ao mundo jurídico. “Na obra, no meio das intrigas e brigas pelo poder, alguns revoltosos pretendem destituir o rei e confrontar totalmente o sistema. Para tanto, é necessário promover a anarquia, afastar a aplicação das leis, desmantelar o ordenamento vigente. Logo, deve-se ‘matar todos os advogados’. Eles, assim, seriam os alicerces do sistema, na medida em que protegem as leis em vigor”, defende.

Já Bottini cita o mote principal de Otelo, fazendo um paralelo entre a situação da peça e algumas discussões do Conselho Nacional de Justiça (CNJ). “Nessa obra, Iago torna-se inimigo de Otelo porque este promoveu Cássio e não a ele, dando ensejo a toda a tragédia subsequente. A origem é a revolta por ser preterido em uma promoção. Nota-se que o despeito pela promoção de outro não é algo contemporâneo, mas persiste ao longo do tempo, da história. Quando vejo o CNJ discutir critérios de promoção de juízes, quem merece ou não merece o benefício, a história de Otelo sempre me vem à mente”, compara.

Mas seria possível, quatro séculos depois, em uma sociedade organizada de forma totalmente diferente, fazer paralelos entre os personagens shakespearianos e os profissionais da área jurídica de hoje? Para Bottini, sim. “Não só entre os profissionais, mas entre aqueles que são afetados pelo Direito, como os réus e acusadores. As leis mudam, a organização judicial se transforma, mas alguns conflitos humanos são existenciais. A vaidade, a inveja, o ciúme, são a fonte das desavenças e dos litígios judiciais desde sempre”, argumenta. 

Castro Neves segue praticamente a mesma linha de raciocínio. “Shakespeare está em toda parte. Afinal, o que mais encanta na obra dele é a humanidade da sua criação, plena de personagens de carne e osso, com os quais nos identificamos. Apesar da mudança dos costumes e do avanço da tecnologia, a humanidade se mantém incólume. A inveja, a compaixão, o ciúme, a generosidade, vaidade e gratidão, entre tantos outros sentimentos, são os temas de sempre”, reforça.

Corrêa e Castro relembra fato curioso, que ilustra a relação importante entre o Direito e a literatura. “Nunca me esqueço, quando estava na época da faculdade de jornalismo, nos anos 1980, de uma matéria no Jornal do Brasil, que mostrava a foto de um dos grandes advogados criminalistas daquela época num julgamento, exibindo um livro com a peça Otelo e utilizando o enredo do drama como parte das suas justificativas para a defesa da sua parte”, relata.

Nesse sentido, acredita Bottini, a formação de novos profissionais do Direito não deve se limitar apenas às leituras mais especificas da área. Para ele, a formação técnica é importante, mas não suficiente. “Um profissional do Direito lida com pessoas, com questões humanas da mais alta relevância. Os autos não são apenas papel, mas aflições ou esperanças. Tratam de expectativas, de liberdade, de patrimônio, enfim, de questões relevantes, vitais. Como dizia Marcio Thomaz Bastos, o advogado deve ler e conhecer o Código Penal para a racionalidade das argumentações, mas deve ler Crime e castigo para entender a alma que está por trás do crime, do delito, suas angústias e suas apreensões. Ler Shakespeare atualiza o profissional do Direito sobre os contornos de sentimentos humanos perenes, e do desencadeamento destes nas relações de poder e na própria estruturação política de uma sociedade”, argumenta Bottini. A leitura ajuda a aprimorar a capacidade de interpretar a realidade, sustenta. “No Direito, tudo passa pela interpretação, pela arte de extrair o sentido das coisas. A boa literatura vai demandar precisamente esse exercício de interpretação, ferramenta essencial ao aplicador do Direito. Afinal, não basta conhecer as leis, a orientação da doutrina e da jurisprudência. Além disso, a leitura nos permite compreender melhor o ser humano. Independentemente do ponto em discussão, o Direito sempre estará tratando, em última análise (e por vezes indiretamente), do ser humano”, conclui.

Shakespeare na Academia
 
Na introdução do livro Mil vezes mais justo: O que as peças de Shakespeare nos ensinam sobre a Justiça (Editora WMF Martins Fontes, 2014), o professor da Universidade de Nova York Kenji Yoshino conta que a proporção de inscritos nas disciplinas que leciona vem apontando uma grande preocupação dos estudantes com uma formação mais ampla. Enquanto a cadeira de Direito Constitucional tem dois candidatos por vaga, a proporção em Direito e Literatura é de seis para uma. Para Yoshino, seus alunos sabem que “a literatura vai complementar sua formação jurídica”.

Ele acrescenta que, de maneira geral, a aula de Direito e Literatura foi se transformando “numa aula sobre a Justiça em Shakespeare”. Yoshino se diz ainda “impressionado com a quantidade de questões contemporâneas relacionadas à Justiça que a obra de Shakespeare ilumina”, e revela que suas aulas o levaram a ter contato com um “círculo secreto de ‘juízes’ shakespearianos” – um grupo de magistrados e advogados que se reúne em Nova York mensalmente para ler o Bardo. 

Organizado em nove capítulos, Mil vezes mais justo destaca em cada um deles uma peça e um personagem ou uma figura central – O vingador, O juiz, O louco, O mago, entre outros. O segundo capítulo chama-se justamente O advogado, e nele o professor comenta O mercador de Veneza. Ao falar da personagem Pórcia – que representaria “uma advogada com tamanha capacidade verbal que nenhuma lei consegue subjugá-la” –, o autor observa que a retórica é a principal arma do mundo jurídico. “O medo e a desconfiança que temos dos advogados representam, no fundo, o medo e a desconfiança dos oradores hábeis.”

A 3ª edição (revista e ampliada) do livro do professor José Roberto de Castro Neves, Medida por medida: O Direito em Shakespeare (GZ Editora, 2013), também foi publicada ano passado. O trabalho é mais minucioso: são 28 capítulos, cada um deles analisando uma peça e um aspecto específicos: em Henrique VI, A morte dos advogados; em Tito Andrônico, O silêncio dos tribunais; em Ricardo III, A moral; em Júlio César, A retórica; em Henrique VIII, O devido processo legal etc. O título do capítulo final, Por que o advogado deve ler?, poderia ser um resumo da ideia central defendida pelo professor. Questão que ele próprio responde: “Sem leitura, o legislador não compreenderá o alcance das regras que edita; o juiz não se sensibilizará para o efetivo problema que reclama a sua decisão; e o advogado não conseguirá expor suas verdades. (...) Sem ler, a nossa humanidade perde e o mundo todo fica menor.”

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