19/08/2015 - 12:28

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STF decide se portar drogas para uso próprio é crime

19/08/2015 - 12:28

STF decide se portar drogas para uso próprio é crime

Especialistas apontam, no entanto, a necessidade de avançar e definir parâmetros que reduzam a criminalização de usuários como traficantes
 
VITOR FRAGA
Desde junho, está liberado para votação pelo Supremo Tribunal Federal (STF) um processo que pode descriminalizar o porte de drogas ilícitas no Brasil para uso pessoal. Em tese, apenas o artigo 28 da Lei de Drogas (Lei 11.343/06) está em discussão, mas mesmo que a legislação já tenha livrado o usuário de pena, um possível entendimento da corte nesse sentido, com repercussão geral, colocaria o Brasil em sintonia com a tendência mundial em relação à política de drogas – países como Portugal, Argentina, Estados Unidos e Uruguai, de diferentes formas, vêm adotando políticas menos conservadoras nessa área.

Especialistas ouvidos pela TRIBUNA consideram que uma decisão do Supremo favorável à descriminalização seria um avanço, principalmente no que diz respeito ao direito de cada indivíduo decidir que tipo de substância quer ingerir, sem a interferência do Estado. Porém, segundo eles, representaria um passo insuficiente para resolver a complexa questão das drogas e da violência gerada pelo comércio clandestino (para isso, seria necessário alterar a legislação sobre o tema), e poderia ainda gerar dificuldades na aplicação prática da lei em relação à diferenciação entre usuários e traficantes, por exemplo – um dos fatores centrais apontados por aqueles que avaliam que a guerra às drogas é, de fato, uma guerra aos pobres.
 
Julgamento
Desde 18 de junho, o relator, ministro Gilmar Mendes, liberou para julgamento o Recurso Extraordinário (RE) 635.659, ação em que será discutida a descriminalização do porte de drogas no país. O processo se refere a um interno do sistema penitenciário de São Paulo, em cuja cela foi encontrada pequena quantidade de maconha.
 
Caso a decisão seja favorável ao autor, na prática pode significar a descriminalização do porte para consumo pessoal – embora isso já tenha sido despenalizado pela Lei de Drogas de 2006. A alegação da Defensoria Pública foi que a proibição do porte para uso próprio contraria os princípios constitucionais da intimidade e da vida privada, questionando portanto a constitucionalidade do artigo 28 da lei, que fixa penas (sem restrição de liberdade) para “quem adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou trouxer consigo, para consumo pessoal, drogas sem autorização”. O tema foi classificado como de repercussão geral, o que significa que o julgamento do mérito deverá ser aplicado nas demais instâncias do Judiciário, em casos similares. A previsão é de que a matéria entre na pauta neste semestre.

O sociólogo e vereador do Rio de Janeiro pelo PSOL Renato Cinco (que é um dos organizadores da Marcha da Maconha e militante do Movimento pela Legalização da Maconha) observa que a garantia da autonomia individual é importante, mas que o debate precisa ser mais amplo. “O Estado criminalizar a ingestão de substâncias pelas pessoas fere a autonomia do indivíduo sobre seu corpo. Foi esse princípio que a Suprema Corte da Argentina adotou em 2011, ou o parlamento de Portugal, em 2001. A decisão do STF, caso favorável, sem dúvida será um avanço, mas tímido. Ela não toca em duas questões fundamentais hoje, que são a regulamentação do mercado, fator de produção de violência, e a questão da diferenciação entre o usuário e o traficante”, afirma Cinco. 

Para ele, a lei é falha porque destaca como fatores de diferenciação a “natureza e a quantidade da substância apreendida”, além do “local e as condições em que se desenvolveu a ação, as circunstâncias sociais e pessoais, bem como a conduta e aos antecedentes do agente”, o que cria uma seletividade na punição. “Movimentos de direitos humanos vêm denunciando que, sistematicamente, na prisão de pessoas de classe média e alta, eles são enquadrados como usuários, apesar de às vezes a quantidade de droga apreendida ser grande. Mas se o preso é morador de favela ou periferia, não tem emprego ou acesso a um advogado, a Defensoria Pública não tem estrutura suficiente para atender a todos. No fim, muitos são condenados como traficantes sendo usuários”, critica.

O professor de Direitos Humanos da FGV Direito Rio Michael Mohallem considera que o uso de drogas se inclui na categoria das práticas da esfera privada que não afetam o direito de outra pessoa. “A Constituição protege a intimidade e a vida privada como direitos do mais alto nível, o que não quer dizer que não possam entrar em choque com outras proteções legais. Para criar uma exceção da inviolabilidade da intimidade há que se ter justificativa razoável, o que não há nesse caso, principalmente no caso do uso de drogas leves em âmbito privado”, afirma. 

Diversas entidades entraram como amicus curiae no processo, e juristas que são referência na área o acompanham. A professora de Direito Penal da Faculdade Nacional de Direito e coordenadora do Grupo de Pesquisas em Política de Drogas e Direitos Humanos da UFRJ, Luciana Boiteux, que atua como advogada da Associação Brasileira de Estudos Sociais sobre o Uso de Psicoativos (Abesup), concorda com a tese da Defensoria. “Há vários argumentos, mas, sem dúvida, o direito individual à intimidade e à vida privada como espaços imunes à intervenção estatal são fortes razões. Para além disso, entendo que a descriminalização fará bem à saúde pública”, diz ela, que também é vice-presidente do Conselho Penitenciário do Rio de Janeiro. 

Embora considere a descriminalização do uso insuficiente para reduzir a violência produzida pela ilegalidade das drogas, a professora acredita que a medida vai “contribuir para a redução da violência hoje praticada pela política contra usuários”, que precisam “ser considerados como sujeitos de direitos e não mero objeto de uma política autoritária”. Além disso, acrescenta, “a descriminalização poderá gerar efeitos positivos na ampliação do acesso a tratamento voluntário, como ocorreu em Portugal, pelo fato de o usuário não ser mais estigmatizado como criminoso e com isso ganhar confiança para buscar ajuda. Como medida a médio e longo prazos, eu defendo a regulação responsável e a legalização de todo o circuito produtivo das substâncias hoje ilícitas, pois o fim do proibicionismo é essencial para a redução da violência”, argumenta.

Também favorável à legalização de todas as drogas, Renato Cinco entende que a luta pela legalização da maconha, especificamente, poderia ser um primeiro passo importante para promover alterações na política sobre o tema. “Sou favorável à regulamentação do mercado de drogas em geral, o que acabaria com a necessidade de diferenciação. Mas, entendendo que avançamos aos poucos, acho que temos que comemorar a descriminalização se ela vier, apontando os limites, que seriam não tocar na ilegalidade do mercado nem na diferenciação entre usuários e traficantes”, esclarece. 

Ele considera que essa diferenciação tem alguns aspectos centrais. “Um deles é que o processo por tráfico de drogas tem que envolver a prova do crime. Se alguém está sendo acusado, os agentes da lei têm que apresentar à Justiça a informação sobre quem foi o comprador, quem foi o vendedor, quando houve a venda, qual a quantidade vendida, o valor etc. É preciso haver o ato de tráfico. E o acusado tem que ser apresentado ao juiz em um prazo de 24 horas, para não ficar semanas ou meses preso injustamente”, propõe.

Para outras entidades que participam do processo, a descriminalização é um tema que precisa ser debatido. O diretor do Viva Rio e secretário executivo da Comissão Brasileira sobre Drogas e Democracia (CBDD), Rubem César Fernandes, conta que a declaração apresentada pelas duas entidades (que também participam do processo), assinada pelo advogado Pierpaolo Cruz Bottini, parte justamente da tese da liberdade individual. Para Fernandes, a descriminalização ajudaria principalmente pessoas que sofrem com o abuso de drogas. “Hoje, com a proibição legal e os medos que assombram este mercado, as pessoas e as instituições têm dificuldade de se aproximar do tema. Ajudaria sobretudo na proteção aos jovens, que formam a massa consumidora. No caso da maconha, que é de fácil cultivo domiciliar, abriríamos a possibilidade de as pessoas deixarem de frequentar o comércio clandestino. A regulação do seu cultivo para consumo próprio representaria uma redução na receita do narcotráfico”, diz ele.

Para o presidente da Comissão de Políticas sobre Drogas da OAB/RJ, Wanderley Rebello Filho, já existe o entendimento de que a repressão falhou no mundo todo. “É preciso retirar o consumidor de qualquer tipo de droga das esferas policial e judicial. Não são pessoas competentes para tratar do tema, são casos para as secretarias de Saúde e de Educação. Se o STF julgar sem pressões e, principalmente, afastando-se da hipocrisia que envolve o tema, obviamente será favorável à descriminalização”, acredita. Rebello observa que o uso da maconha, por exemplo, não causa letalidade direta, enquanto drogas lícitas são extremamente letais. 

“No ano passado, o abuso do álcool matou só nas estradas mais de 20 mil pessoas, correspondendo a mais de 50% de todos os acidentes fatais em rodovias. Fora que, em decorrência do álcool, há violência doméstica, contra crianças, mulheres, brigas em bares. No entanto, ele é liberado, há propaganda na mídia. Não sou contra, sou favorável à tese de que as pessoas podem fazer uso do que elas quiserem, desde que não prejudique terceiros”, esclarece. 

O uso medicinal da maconha também vem sendo debatido em diversos países. “Os Estados Unidos abriram as portas para o canabidiol [elemento da cannabis que ameniza o efeito psicoativo do THC, sem retirar as propriedades terapêuticas da planta] no tratamento de diversos pacientes. Mas aqui é difícil, o paciente tem que percorrer caminhos desnecessários. A descriminalização pelo STF deve facilitar o acesso para quem precisa de tratamento médico”, afirma Rebello.

O secretário de Segurança Pública do Rio de Janeiro, José Mariano Beltrame, é favorável à experiência de Portugal: a descriminalização de drogas não pesadas. “Lá, eles tiraram essa questão da polícia: o que eu acho importante, e também desonera o Judiciário – e colocaram na Saúde. Montaram equipes multidisciplinares para convidar pessoas que usam drogas e querem largar o vício a se tratar em clínicas muito bem equipadas, para que essas pessoas sejam atendidas com todos os requisitos que garantem os direitos humanos”. 

No Brasil, opina Beltrame, a discussão não deve ser apenas criminalizar ou descriminalizar. “Temos que nos preocupar com os outros passos, fazer essa caminhada de trás pra frente. Como vamos abordar esse problema? Como vamos contribuir para ajudar uma pessoa a deixar o vício? Vamos ter clínicas, levar essas clínicas até o usuário? Vamos fazer com que ele vá até elas? Enfim, precisa ser acertada uma série de outros procedimentos antes desse passo. O dependente tem que ser tratado na saúde e a segurança tem que se concentrar no grande traficante. Isso racionaliza efetivo, atividade policial, a burocracia e a atividade do Judiciário, que está abarrotado de processos. Acho que isso deixaria a segurança pública cuidar da segurança pública”, defende.

Segundo o professor Mohallem, embora a decisão só afete diretamente o artigo 28 da Lei de Drogas, alguns juristas entendem que o STF, se quiser resolver o problema da excessiva criminalização de usuários como traficantes, precisará avançar mais. “Para muitos juízes, a condição social do réu acaba afetando a isonomia da decisão. Seria interessante que o Supremo estabelecesse parâmetros que sugerissem quantidades ou outros elementos para diferenciação. Seria uma decisão ousada, mas a corte já fez coisas parecidas antes”, argumenta. 

Ele acredita que, se o STF considerar apenas que o artigo 28 é inconstitucional, ou seja, que usuários não podem ser criminalizados, a situação atual em que usuários são condenados como traficantes permaneceria ou até poderia se agravar. “Hoje, juízes que têm posição ideológica pela criminalização já tendem a enquadrar casos de usuários como traficantes. Então, é preciso estabelecer uma margem segura de definição de quem é usuário de fato, para que essa pessoa não corra o risco de que um policial, promotor ou juiz interprete que ele não é usuário e sim traficante, e portanto fique desprotegida da decisão do próprio Supremo”, conclui.

Luciana Boiteux, que coordenou, com Ela Wiecko, estudo (ver box na página 18) sobre a questão, aponta que a maioria dos condenados por tráfico é formada por réus primários, que foram presos sozinhos, desarmados e com pouca quantidade de droga. Ela sustenta que o aumento do número de pessoas presas por tráfico de drogas no Brasil é causa do alto índice de encarceramento no país, mas isso não significou nenhuma redução do consumo nem mesmo contenção do mercado ilícito. “Na verdade, o proibicionismo fracassou nos fins a que se propôs no século passado: proteger a saúde pública. Mas podemos dizer que foi muito eficaz na intensificação do controle social sobre pobres, negros, mulheres e minorias em geral, que são desproporcionalmente afetados pela atuação concreta na repressão penal no Brasil a pretexto de ‘combater as drogas’”, afirma a pesquisadora, reforçando que “a grande maioria dos presos são grupos vulneráveis”, que têm os direitos desrespeitados e são, em geral, “usuários pobres confundidos com traficantes”.

Ou seja, a criminalização da população mais pobre seria a verdadeira face da guerra às drogas. “Hoje já se discutem os efeitos da guerra às drogas sobre a produção da violência, a instrumentalização da guerra às drogas como uma ação seletiva do Estado contra as populações marginalizadas. Como é que o tráfico de drogas movimenta trilhões de dólares no mundo sem a participação de agentes financeiros? E não há investigação sobre a lavagem do dinheiro do tráfico”, critica Cinco, defendendo que é preciso “desmatricular” as pessoas na “universidade do crime”, apostando no fim da proibição: “O debate que a sociedade tem que fazer é: proibir é abrir mão de controlar. Você só pode regulamentar o que não é proibido”. 
 
Perfil dos encarcerados por tráfico
O estudo Tráfico e Constituição: um estudo sobre a atuação da Justiça Criminal do Rio de Janeiro e do Distrito Federal no crime de tráfico de drogas, encomendado pelo Ministério da Justiça ao Núcleo de Política de Drogas e Direitos Humanos da UFRJ, foi publicado em 2009. No universo de condenados por esse crime no Rio de Janeiro de outubro de 2006 a maio de 2008, a pesquisa observou que: 66% eram réus primários; 91% foram presos em flagrante; 60% estavam sozinhos quando foram presos; apenas 14% portavam armas no momento do flagrante e da prisão; 54% foram presos com maconha, 42% flagrados e portando menos de 100g; e 58% receberam penas de oito anos ou mais de reclusão em regime fechado.
 
Cenário mundial
Com dados de 2012, foi divulgado no ano passado o Relatório Mundial sobre Drogas da ONU, que apontou que cerca de 243 milhões de pessoas, uma média de 5% da população mundial entre 15 e 64 anos, fazem uso de drogas ilícitas. Os usuários considerados problemáticos somariam 27 milhões, ou cerca de 0,6% da população adulta mundial – a cada 200 pessoas, uma é dependente. Foi a primeira vez que o o Escritório das Nações Unidas contra a Droga e o Crime (Unodc) sugeriu a descriminalização do consumo: “Pode ser uma forma eficaz de ‘descongestionar’ as prisões, redistribuir recursos para atribuí-los ao tratamento e facilitar a reabilitação”, diz trecho do relatório de 22 páginas.

Apesar de os Estados Unidos continuarem sendo o país que lidera a guerra às drogas, atualmente mais da metade dos estados norte-americanos autoriza o cultivo e a venda de cannabis para fins medicinais – quatro deles (Colorado, Washington State, Oregon e Alaska) legalizaram a comercialização da maconha inclusive para fins recreativos.

Em dezembro de 2013, o Uruguai tornou-se a primeira nação do mundo a legalizar a produção, a distribuição e venda de maconha sob o controle do Estado. O objetivo da lei, segundo o governo uruguaio, é tirar poder do narcotráfico e reduzir a dependência de drogas mais pesadas. Uma agência estatal, o Instituto de Regulação e Controle de Cannabis (IRCCA), ligado ao Ministério da Saúde Pública, fica responsável por emitir licenças e controlar o comércio.

Argentina (desde 2011) e Portugal (desde 2001) são os exemplos quando se trata de descriminalização do uso. Em maio de 2015, a Colômbia interrompeu a pulverização aérea da coca, e no início de julho os deputados chilenos aprovaram um projeto de lei que autoriza o cultivo de pequenas quantidades de maconha naquele país. Para entrar em vigor, a medida ainda precisa ser analisada por uma comissão de saúde e passar pelo Senado.
 

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