19/08/2015 - 12:13

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Vera Malaguti – Secretária-geral do Instituto Carioca de Criminologia: ‘Meios de comunicação têm naturalizado a barbárie’

19/08/2015 - 12:13

Vera Malaguti – Secretária-geral do Instituto Carioca de Criminologia: ‘Meios de comunicação têm naturalizado a barbárie’

“Temos a maior taxa de crescimento da população encarcerada, a polícia que mais mata no mundo e a população é levada à ideia de que prender mais e matar mais vai resolver alguma coisa”. Contundente na crítica à grande mídia e às proposições legislativas que visariam a reduzir a criminalidade – como o projeto que diminui para 16 anos a maioridade penal –, a socióloga Vera Malaguti, professora de Criminologia da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, diz que a opção política de tratar questões sociais pelo viés policial-punitivo leva ao afastamento, cada vez maior, de uma saída. E que o “falso consenso construído” para permitir a condenação de adolescentes pode impor “a maior derrota à República e à democracia no Brasil”. Para Vera, a legislação penal tem sido tratada com grandes equívocos por muitos parlamentares, à esquerda e à direita, e por alguns juristas.
 
PATRÍCIA NOLASCO

O que a senhora pensa sobre a redução da maioridade penal, sob apreciação da Câmara dos Deputados e do Senado Federal?

Vera Malaguti
– Penso que a discussão, na forma como foi conduzida pela Câmara, é um indício de tempos muito terríveis. Como diria Nilo Batista, o uso excessivo do sistema penal é um sinal de intensa conflitividade social. Quando a opção política é tratar as questões sociais pelo viés policial-punitivo, nos deparamos com um paradoxo na democracia ou estamos no limiar de uma ditadura. A grande imprensa, em particular O Globo, está em campanha pela redução, conduzindo a opinião pública para a profanação de um território sagrado na República brasileira contemporânea, a proteção da nossa infância e da nossa juventude.

A redução da maioridade integra um conjunto de propostas do Legislativo que seriam de combate à criminalidade, e que a senhora chamou de medidas de aprofundamento da barbárie. Por quê?

Vera Malaguti – Quando falo de barbárie, refiro-me ao conceito de barbárie como excesso de civilização, e não como contraponto à civilização. O que vemos no país hoje é extremamente preocupante, linchamentos, execuções policiais, esquadrões da morte e tudo isso naturalizado por um noticiário que evoca mais violência.
 
Na criminologia há uma vertente denominada “técnicas de neutralização”: diferentes grupos sociais desenvolvem definições favoráveis à violação da lei. Creio que desenvolvemos técnicas de neutralização quando não nos indignamos com a violência e a potencializamos na resposta às infrações, entre elas as juvenis. Temos a maior taxa de crescimento da população encarcerada, a polícia que mais mata no mundo e somos levados a achar que prender mais e matar mais vai resolver alguma coisa. Assim, vamos nos afastando cada vez mais de uma saída para tudo isso.

A questão criminal no país e a legislação penal, no seu entendimento, vêm sendo tratadas de forma adequada por juristas e parlamentares?
 
Vera Malaguti – Creio que a legislação penal tem sido tratada com grandes equívocos por muitos parlamentares, à esquerda e à direita, e por alguns juristas. Poderíamos dizer que só dão voz no debate público ao punitivismo estéril. Estamos atrás de um paradigma estadunidense que já foi superado nos Estados Unidos. A Corte Suprema de lá, por exemplo, determinou que o Estado da Califórnia solte cerca de 30 mil presos. Enquanto isso, a cada dia aumentamos penas ou tipificamos crimes novos, alimentando a ilusão que a pena executada em nossas prisões infames vai trazer algum benefício. Sinto falta de coragem nos meios políticos e jurídicos para se contraporem a essa imensa onda punitiva. Acho também escandaloso que as concessões públicas de rádio e televisão sejam hegemonizadas por esse senso comum barbarizante. Com relação à redução da idade penal, o que ocorre é que o povo brasileiro não tem acesso ao ponto de vista contrário à redução, parece que isso não interessa aos grandes negócios da mídia.

Visto pela criminologia, o que é o populismo punitivo?

Vera Malaguti – O populismo punitivo é o conjunto de discursos que circulam pelo senso comum, tem a ver com a relação da mídia com a questão criminal. Os meios de comunicação no Brasil têm naturalizado a barbárie, é só ligar a televisão de tardinha e ver. As políticas de confronto têm criado, nas áreas pobres, uma paisagem de guerra, com episódios macabros que se justificam automaticamente se forem etiquetados com a marca “combate ao tráfico”. O Judiciário muitas vezes tem se prestado à policização produzindo juízes justiceiros que não se orientam pela proteção dos direitos e das garantias. Outros se acovardam diante da opinião pública, isto é, da opinião publicada na mídia conservadora. Os que se contrapõem são neutralizados ou desmoralizados pela mídia. Vai se criando uma ambiência subjetiva a partir dos efeitos dessas premissas que nada tem a ver com dados, estatísticas e experiências concretas. É o caso do debate sobre a redução da maioridade penal. Todas as estatísticas, como as apresentadas pelo Ministério da Justiça, demonstram que diminuir a idade não faz nenhum sentido. Nossa realidade demonstra que seria um descalabro se isso acontecesse. Mas quem resiste a meses de Jornal Nacional focando especificamente infrações trágicas protagonizadas por jovens (principalmente se forem negros e pobres)? Isso é o populismo punitivo.

Os Estados Unidos, após anos permitindo o encarceramento de crianças e jovens, aprovaram leis que tornam mais difícil processar e punir adolescentes como se fossem adultos. O Brasil está caminhando no sentido inverso, inclusive em relação à maioria dos países?

Vera Malaguti – Mesmo os Estados Unidos, que impuseram sua política criminal ao mundo, estão mudando de rumo. Não só por boas intenções, mas pela realidade do fracasso do sistema penal para resolver as infrações juvenis ou o uso problemático de drogas, por exemplo. O Brasil está se isolando, inclusive em relação à América Latina, e eu atribuo isso ao monopólio dos meios de comunicação que impede a circulação de opiniões que atrapalhem seus grandes negócios e os compromissos políticos que os viabilizam. O falso consenso construído para aprovar a redução da maioridade penal pode impor, para mim, a maior derrota à República e à democracia no Brasil. Seria a pá de cal no projeto de Brizola e Darcy Ribeiro, uma escola pública, de qualidade, laica e em tempo integral.

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