03/08/2018 - 21:00

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Herança virtual

03/08/2018 - 21:00

Herança virtual

Herança virtual

 

Gustavo Martins de Almeida*

 

 

Como gerenciar, no inventário de pessoa falecida, os direitos sobre obras artísticas, literárias e científicas situadas no mundo virtual? Os herdeiros poderão acessar e explorar os textos de mensagens eletrônicas do seu antecessor? Como o provedor de internet saberá da morte de um cliente? A quem ele deverá entregar as mensagens? Como se fará a entrega?

 

Até um passado recente preponderavam nas heranças os bens corpóreos, salvo no caso dos artistas, que deixavam herança majoritariamente imaterial, como os direitos sobre suas obras (não confundir um manuscrito, mero suporte material, ainda que de valor, com a obra do intelecto em si, essencialmente abstrata). Com o advento da internet, vem crescendo exponencialmente a participação de bens imateriais no patrimônio do cidadão comum, como os blogs, os e-mails, os sites, todos contendo informações variadas, de conversas triviais a obras literárias de relevo, passando por senhas de bancos e segredos pessoais. Essa massa de dados fica armazenada aos gigabytes em sociedades prestadoras de serviços de comunicação, que em última análise guardam e possibilitam a sua transmissão.

 

Falecendo uma pessoa que não tenha feito restrição sobre seu patrimônio de mensagens eletrônicas, pode o inventariante pedir ao juiz que determine aos provedores de serviços de internet o envio dos dados do falecido? A resposta é afirmativa. Mas como tal se dará? O falecido pode ter várias contas de e-mail, com endereços eletrônicos nem sempre coincidentes com o nome de nascimento, e geralmente com senhas ignoradas. Como identificá-los? Como distinguir dos homônimos? O ponto de partida será a conta de e-mail da pessoa, cujo endereço eletrônico hoje é referência indispensável.

 

Certificada a titularidade - e já começa a tomar vulto o uso da chave digital -, não há como o provedor se negar a fornecer as informações. Outra questão: é possível que uma pessoa determine, em seu testamento, a destruição de todas as informações armazenadas virtualmente em seu nome após a sua morte? Ou que sejam tornadas públicas somente após determinado período de tempo? A resposta é positiva, e deve ser respeitada a vontade do falecido, cabendo ao Judiciário mandar cumprir o último desejo da pessoa.

 

Ultrapassada essa etapa, e localizadas as contas onde se armazenam os dados e os sites em nome daquela pessoa, pode o inventariante examinar os dados disponíveis? E mais: ele ficará responsável pela manutenção desses dados, como pagamento de hospedagem, adoção de medidas judiciais contra quem queira usar indevidamente o nome, alterar ou subtrair dados de forma ilegal? Aplica-se a regra vigente, segundo a qual o inventariante deve relacionar, classificar e zelar pelos bens deixados pelo falecido até que os herdeiros os recebam de forma individuada e definitiva.

 

Transmitidos os bens, os herdeiros podem tirar proveito das obras, respeitados os direitos morais o tempo de sua exploração, hoje de 70 anos após a morte do autor. Assim, a Lei de Direito Autoral brasileira conceitua obra póstuma como "a que se publique após a morte do autor" e também faz referência a publicação de cartas. Será possível a publicação de e-mails póstumos, ou da correspondência eletrônica entre dois escritores na forma de livro? Ou poderia ser disponibilizado publicamente o acesso a essa correspondência? Em princípio, não tendo havido oposição dos falecidos, a resposta também é "sim", convindo atentar para a autenticidade das mensagens, que no papel comportam análise grafotécnica, e no meio virtual não permitem fisicamente esse recurso. Outro desafio é o da tributação. Como avaliar os bens imateriais, para fins de cobrança de imposto; sobre que base de cálculo incidirá o percentual de 4% do imposto de transmissão causa mortis, previsto na legislação fluminense?

 

Outras questões surgem, como o próprio testamento virtual (já em cogitação legislativa) e os efeitos das declarações em e-mails, entre elas a de reconhecimento de um filho havido fora do casamento, como prova para uma ação de investigação de paternidade.

 

Essas são, num primeiro exame, as questões básicas sobre a herança de bens imateriais.  As indagações aqui formuladas servem para refletir sobre o destino do oceano de informações geradas e acumuladas em uma estante virtual, quando deixarmos de ter existência física, e nos limitarmos, no mundo cibernético, a um endereço eletrônico órfão.

 

 

*Mestre em Direito e membro da Comissão de Direito Autoral da OAB/RJ.


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