03/08/2018 - 20:59

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A dignidade contra a liberdade sexual

03/08/2018 - 20:59

A dignidade contra a liberdade sexual

A dignidade contra a liberdade sexual

 

Kátia Rubinstein Tavares*

 

Recentemente, o presidente da República sancionou a Lei nº 12.015/09, que modificou os crimes contra os costumes do Código Penal, passando a vigorar sob  nova terminologia: "Dos Crimes Contra a Dignidade Sexual".

 

Entre as alterações destacadas, está a extinção da Ação Penal Privada nestes delitos, ou seja, o direito de a vítima não dar publicidade ao abuso sofrido. Atualmente, os processos serão movidos contra o acusado somente pelo Ministério Público e, em alguns casos, com a representação da vítima. Não atentou o legislador para o fato de que muitas vezes a devassa de um processo criminal pode acarretar a ela outra violência.

 

Houve a mudança do estupro e atentado violento ao pudor, estando reunidos, a partir de então, num único dispositivo legal (art. 213): quem obriga outrem (mulher ou homem) a manter relação sexual mediante violência, ameaça ou outro ato libidinoso. Cabe ressaltar que o legislador cometeu imprecisão de linguagem, geradora de prováveis injustiças, ao considerar genericamente como conduta qualquer tipo de devassidão.

 

Ora, esse equívoco já era previsto anteriormente, porquanto se equiparava o atentado violento ao pudor à prática de todos os atos diversos da conjunção carnal. A referida lei, ao invés de corrigir esse excesso de abrangência e de separar as condutas, acabou por repetir a mesma expressão utilizada, englobando todas elas numa só, e punindo com prisão, no mínimo de seis anos, desde o simples beijo roubado por um sujeito que investiu contra alguém, apenas com carícias, até o cometimento de estupro ou sexo anal.

 

Outra novidade trazida é a criação do crime de estupro e outros atos libidinosos contra "pessoas vulneráveis", definidas como o menor de 14 anos, o portador de deficiência mental ou com enfermidade que a impeça de reagir (art. 217-A), cuja pena privativa de liberdade é de oito a 15 anos. Embora o Código Penal (1940) presumisse a violência de quem mantivesse relação sexual com o menor de 14 anos de idade, a jurisprudência moderna, especialmente dos tribunais superiores, vinha excluindo o crime quando se comprovasse o consentimento válido da vítima. Por isso, a nova legislação constitui um retrocesso, por ignorar que nos dias de hoje não é incomum o fato de existir jovem com vida sexual ativa a partir do início da adolescência, em razão de estar fazendo esta opção de forma espontânea e absolutamente livre de constrangimento, haja vista a evolução dos costumes, notadamente, pela influência dos meios de comunicação.

 

O mais contraditório é que não se fez distinção alguma entre o sexo consentido e o violento, impondo a mesma situação jurídica para quem abusa de adolescente com mais de 14 anos empregando violência ou ameaça. Falsa moralidade estabelecida pelo legislador, digna de exagero e incoerência, violando os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade constitucionalmente consagrados. Assim, o rapaz de 18 anos de idade que namora uma adolescente de 13 anos, mantendo com ela relações sexuais, mesmo consentidas, está sujeito à pena de prisão (oito a 15 anos) mais severa, portanto, que o estupro, praticado contra mulher (seis a 10 anos), e também em relação ao estupro cometido contra menor que possua idade entre 14 a 18 anos (oito a 12 anos), ambos com violência, ficando tais condutas mais graves ainda do que matar alguém cuja sanção prevista (homicídio simples) é de seis a 12 anos de cadeia!

 

Por fim, a referida alteração (art. 217-A) introduzida vai promover situações ambíguas, passíveis de erros judiciários, principalmente em se tratando do deficiente mental, uma vez que seu parceiro poderá vir a ser preso e condenado pela Justiça. Por outro lado, é possível que o portador de doença mental possua a sexualidade aflorada, concordando ou vindo mesmo a provocar a relação sexual. Logo, com a atual redação, o deficiente mental ficará impossibilitado para o resto da vida de manter contato físico mais íntimo com terceiro. O Estado não pode criar figuras penais que atentem contra a pessoa humana, sua liberdade, sobretudo, afrontando a dignidade da liberdade sexual. Em suma, a nova legislação deverá ser brevemente examinada sob o enfoque da sua respectiva inconstitucionalidade. Com a palavra, os doutos ministros do Supremo Tribunal Federal.

 

*Membro da Comissão de Direito Penal do Instituto dos Advogados Brasileiros (IAB)


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