07/07/2014 - 15:00

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O direito ao esquecimento

07/07/2014 - 15:00

O direito ao esquecimento

Decisão do Tribunal de Justiça da União Europeia obriga site de buscas a apagar informações e aquece debate sobre proteção de dados pessoais na internet
 
VITOR FRAGA
Na era da informação, as pessoas têm o direito de ser “esquecidas”, de apagar registros de dados pessoais ou de fatos que estejam disponíveis publicamente? A resposta a essa pergunta envolve muitas vezes o equilíbrio entre dois princípios fundamentais do Estado democrático: o direito à privacidade e o acesso público à informação. Exemplos sobre o desequilíbrio entre esses dois princípios têm gerado muita polêmica, e no final de maio uma decisão do Tribunal de Justiça da União Europeia pôs um pouco mais de lenha na fogueira ao conceder sentença favorável a Mario González, advogado espanhol que exigia que o site de buscas Google apagasse o registro de seus dados pessoais, bem como os links para notícias do jornal La Vanguardia que continham aviso do Ministério do Trabalho daquele país sobre um leilão de imóveis realizado em 1998, para sanar dívidas de González.

Embora a decisão da corte seja válida apenas para endereços eletrônicos em países da União Europeia (UE), o debate sobre o “direito ao esquecimento”, que já tem jurisprudência no Brasil, ganha força, e na esteira das denúncias feitas por Edward Snowden sobre espionagem na internet e da aprovação do Marco Civil brasileiro, o tema da proteção de dados pessoais na rede mundial de computadores deve ser o próximo assunto a entrar em pauta.

Apesar de polêmica, para o mestre em Direito pela Universidade de Brasília (UnB) e ciberativista Paulo Rená, a decisão do tribunal europeu é menos drástica do que parece. “É importante deixar claro que a corte não garantiu o direito de retirada do conteúdo da internet. No caso dessa decisão, a Justiça determinou a retirada do link no sistema do Google para a página do jornal com a matéria que se refere a González. A página do jornal continua na internet, porque a ação foi contra o Google. Se uma pessoa procurar no site do jornal ou em outro mecanismo de busca provavelmente irá achar a notícia”, explica Rená, que é servidor público federal e durante um ano esteve cedido para a Secretaria de Assuntos Legislativos do Ministério da Justiça, na qual coordenou o projeto coletivo de elaboração do Marco Civil da Internet no Brasil – Lei Federal 12.965/14. 

Para cumprir a decisão, o Google disponibilizou um formulário online, através do qual os interessados podem solicitar a retirada de links para sites que considerem possuir dados pessoais desatualizados e informações prejudiciais, entre outros itens. Em apenas um dia, 12 mil pessoas fizeram solicitações. Na opinião do membro da Comissão de Direito do Consumidor da OAB/RJ e gerente jurídico cível e de interesses coletivos da Federação das Indústrias do Rio, Diogo Mello, a decisão é muito bem-vinda. “No que diz respeito aos temas segurança de redes e de informação e privacidade, a UE se destaca juntamente por ter uma legislação específica e uma política contundente. A decisão foi proferida em um litígio entre a Agência Espanhola de Proteção de Dados e o Google, no caso de um cidadão espanhol que solicitou que fosse retirada da internet uma informação sobre uma dívida antiga já resolvida”, esclarece. 
Para Mello, o tribunal não apenas reconheceu o direito ao esquecimento na internet, através do requerimento aos sites de busca. “Reconheceu inclusive que os fornecedores, os sites ou ferramentas de busca são os responsáveis pelo processamento que é feito no tratamento de dados. No Brasil, os artigos 3º e 7º da Lei Federal 12.965/2014 estabelecem de forma irrefutável que a privacidade é um princípio que deve ser assegurado no uso da internet. Considero democrática a decisão de obrigar os provedores a respeitar a privacidade em todas as suas vertentes, pois essa é a vontade de todos os usuários da rede”, diz.

No entanto, segundo Paulo Rená, a questão é bastante sensível, e não tem resposta pronta. “De alguma forma tem-se uma indicação de resposta com essa decisão, que caminha perigosamente na direção de privilegiar menos a liberdade de expressão e mais o que eu chamaria de censura e alguns chamam de direito à privacidade. A meu ver, nesse caso específico não haveria direito à privacidade, porque o que ele queria ocultar era um fato público, o de que o imóvel dele foi a leilão, não era um fato da vida íntima. É claro que ele pode discordar de mim no que diz respeito à própria vida. Mas estamos lidando, objetivamente, com uma nota do Ministério do Trabalho da Espanha publicada em um jornal”, argumenta.

O direito ao esquecimento, para o presidente do Instituto para o Desenvolvimento do Jornalismo (Projor) e ex-ombudsman da Folha de S. Paulo, Carlos Eduardo Lins da Silva, é essencial, porém tem limites. “Não sou especialista em Direito, minha opinião é a de um jornalista. Acho que se trata de um avanço na democracia. Quando era ombudsman da Folha, escrevi diversas vezes sobre essa impossibilidade de esquecimento na internet, o que sempre me incomodou muito. O jornal ou alguém publica uma informação errada sobre uma pessoa, e aquilo fica lá para o resto da vida. Uma pessoa que cometer um erro na juventude, mesmo depois de pagar por ele ficará marcado pelo resto da vida, porque se alguém fizer uma busca na internet ela pode ser prejudicada profissionalmente ou em um relacionamento, pode sofrer humilhação. O direito de você ter o seu passado encerrado publicamente é importante”, diz, mencionando inclusive os problemas técnicos resultantes dessa medida, a serem solucionados pelos sites. 

Por outro lado, Lins e Silva pondera que o caráter público de alguns fatos deve prevalecer. “Algumas pessoas podem querer apagar aquilo que não deve ser apagado. Uma jovem de 18 anos que resolve posar nua tem o direito, anos mais tarde, de impedir que as imagens continuem circulando. Mas o Collor, por exemplo, não tem o direito de impedir que se diga que ele sofreu um processo de impeachment. O direito ao esquecimento não é universal nem indiferente a matizes”, afirma.

Nesse aspecto, a sentença da corte europeia recomenda cuidado em alguns casos – a ideia é impedir situações como a de um político que recorra à nova regra para extinguir da internet links que direcionem o usuário para notícias que possam prejudicar sua imagem. Segundo a sentença: “Embora seja verdade que, regra geral, os direitos da pessoa em causa protegidos por esses artigos prevalecem também sobre o referido interesse dos internautas, este equilíbrio pode, todavia, depender, em determinados casos particulares, da natureza da informação em questão e da sua sensibilidade para a vida privada da pessoa em causa, bem como do interesse do público em dispor dessa informação, que pode variar, designadamente, em função do papel desempenhado por essa pessoa na vida pública”. 

Paulo Rená sublinha que o entendimento do tribunal é de que, antes de os sites eliminarem o conteúdo, o Judiciário terá que avaliar se a informação ainda é relevante ou não. “O que ocorre é que para as empresas de mecanismos de busca acaba sendo mais prático eliminar logo o conteúdo, em vez de esperar uma decisão judicial, arcar com custos dos advogados, além de todos os prejuízos que uma decisão como essa traz para a imagem da empresa. Não é uma decisão que faz do Google mais bem visto”. Para ele, a reflexão aponta um risco. “Há o perigo de que as próprias empresas tomem medidas para a censura, criem mecanismos internos de redução da liberdade de expressão, para evitar problemas posteriores”, alerta, acrescentando outro possível problema: “Eventualmente teremos mais uma porta para que as empresas usem a lei para proteger sua imagem. Por exemplo, um fabricante de alimentos que tenha feito um recall de produtos estragados nos anos 1990 pode entender que esse fato não é mais relevante, porque os produtos já foram recolhidos, já se passou muito tempo e, portanto, o conteúdo não deve mais estar disponível para busca. Isso vai limpar a sua imagem, e aí vai se perder uma parte dessa memória”.
 
Proteção de dados pessoais
Em 2013, o ministro do Superior Tribunal de Justiça (STJ) Luis Felipe Salomão foi relator de duas ações que discutiram o direito ao esquecimento, em relação a reportagens exibidas na TV. No julgamento do Recurso Especial (REsp) 1.334.097, reconheceu a existência do direito ao esquecimento, proibindo que um programa de televisão exibisse o nome e as imagens de um homem que fora absolvido da acusação de ter participado da “Chacina da Candelária”. Já no julgamento do REsp 1.335.153, discutindo a possibilidade de divulgação do nome da vítima de um crime bárbaro que havia tido muita repercussão nos anos 1950, Salomão entendeu que nessa situação o direito ao esquecimento não se aplicaria, já que o fato seria de domínio público, e que seria impossível apurar um caso de assassinato sem mencionar a vítima e o crime. Mas a maioria da 4ª Turma do STJ votou de forma contrária ao relator, decidindo que a emissora deveria indenizar a família da vítima.

Mesmo sem legislação específica, no Brasil a retirada de links também precisa ser  avaliada  pela Justiça. Segundo o relatório de transparência do Google, somos o segundo país que mais tem solicitações judiciais e governamentais de retirada de conteúdo, ficando atrás apenas dos Estados Unidos. Entre janeiro e junho de 2013, foram recebidos 237 pedidos de remoção de conteúdo, relacionados a 1.416 itens. Ainda segundo a empresa, em 46% dos casos os pedidos foram acatados.

A decisão da corte europeia foi comemorada, em um comentário no Facebook, pela comissária de justiça da UE, Viviane Reding, que disse que a medida seria uma “clara vitória para a proteção dos dados pessoais” dos cidadãos. Diogo Mello concorda que a proteção aos dados é uma preocupação. A sentença “revela uma realidade incontestável, que é a necessidade efetiva da proteção de dados pessoais na internet estabelecendo uma política de segurança da informação e fortalecendo a proteção da privacidade”, diz ele, acrescentando que “a Ordem dos Advogados tem papel decisivo nesse debate”. 

Rená lembra que o Brasil tem um anteprojeto de lei de proteção de dados pessoais, que se encontra parado na estrutura do Executivo federal. “Já saiu do Ministério da Justiça, e está circulando em outras pastas. Trata efetivamente da questão da privacidade, envolvendo não apenas a internet, mas toda a informação que possa ser digitalizada, através de cartão de crédito, telefonia, TV digital, automóveis, tudo que tiver componentes eletrônicos que armazenem informações pessoais. Isso não envolve apenas quem tem muito poder aquisitivo, mas todos os que usam cartão de crédito, por exemplo”, explica. Para ele, o debate ainda está longe de acabar. “A esperança é que após a aprovação do Marco Civil em lei, e da sua regulamentação, o próximo passo óbvio seja relacionado à questão da proteção de dados pessoais”.

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