07/07/2014 - 14:58

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Morte civil temporária

07/07/2014 - 14:58

Morte civil temporária

RODRIGO TOSTES MASCARENHAS*

A favor deles não se invoque dignidade da pessoa humana, presunção de inocência, proteção aos idosos, duração razoável do processo. Todos estes direitos (nestes tempos de “achismo principiológico”) devem ser “ponderados” (eufemismo elegante e juridicamente legitimado que nestes casos significa suprimidos) no combate à corrupção.

A favor deles não se invoquem argumentos de mérito, não se diga que a tese que considera inválida aquela dispensa é minoritária, que existem emergências que permitem formalização processual e outras que exigem atuação instantânea, que o TCU tem precedentes naquele sentido. A favor deles tampouco se diga que o bloqueio dos bens atingiu o dobro do valor objeto da ação.

Estes argumentos, assim como os que envolvem direitos fundamentais, não serão acolhidos… Nem mesmo, em geral, rejeitados. No máximo se dirá que serão analisados por ocasião da sentença, que pode, com sorte, vir em menos de uma década. O máximo que se consegue, e com muito esforço, é o desbloqueio daquelas verbas que a própria lei considera impenhoráveis.

Assim, eles não podem pagar suas contas, não podem prover pelos seus, não conseguem emprego, perdem o que têm. Mas, afinal, não reclamem, o combate a corrupção é uma prioridade e, portanto, àqueles incluídos no polo passivo de ações de improbidade – é deles que tratamos aqui – nenhum direito deve ser (realmente) garantido.

Um setor mais conservador da sociedade afirma que direitos humanos não são para bandidos. Pois bem, há uma prática, cada vez mais comum no Direito brasileiro, que aplica esta máxima àqueles acusados em ações de improbidade. Com efeito, é comum que tais ações sejam propostas com pedido de bloqueio de bens dos envolvidos. A justificativa é óbvia: procurar garantir que uma futura condenação encontre bens com os quais se possa ressarcir os prejuízos ao dinheiro público. Até aí, ótimo!

O problema começa com as centenas de casos nos quais o bloqueio é dado e a ação não anda. Assim, é comum que pessoas fiquem anos com seus bens bloqueados sem que a ação de improbidade seja sequer recebida. Ou seja, são pessoas que materialmente sofrem praticamente todos os efeitos de uma condenação – financeiros, sociais, psíquicos, políticos – sem que sejam sequer tecnicamente réus!
Uma das razões que explica este fenômeno é que cada vez mais os autores de ações de improbidade ampliam o leque daqueles incluídos no polo passivo das ações. Antigamente, responsabilizavam-se os ordenadores de despesas, aqueles que aprovaram ou ratificaram uma licitação ou subscreveram um contrato tido como ilícito ou os que atestaram fatura de forma apontada como ilegal. Agora, a moda é colocar todos aqueles que assinam qualquer coisa no processo administrativo (por vezes a mera assinatura é dispensada). Assim, além daqueles referidos incluem-se os que deram um parecer técnico (sim, cresce a perseguição a advogados públicos), aqueles que juntaram aos autos determinado documento (ainda que produzido por terceiro), ou mesmo aqueles que deram despacho simplesmente encaminhando o processo de um órgão a outro.

Outra razão a explicar o fenômeno é, em geral, a complexidade da causa, que exige conhecimentos aprofundados de Direito administrativo e financeiro, por vezes de contabilidade pública e a leitura de pesada documentação. Também existe o medo de decidir a favor de alguém acusado de “improbidade”. Por fim, existe a comodidade; é fácil, nestes casos, justificar a prevalência do interesse público (in dubio pro societate!).

E assim, cria-se, no Brasil, a estranha figura do temporariamente morto para a vida civil. Isto sem falar do efeito não menos preocupante de tornar os servidores de carreira avessos a qualquer coisa que não seja absolutamente ortodoxa (como se a administração pública não precisasse de inovação). Na dúvida (ou sem ela), indefira!

Esta situação deve continuar? Não tenho dúvida de que não, salvo aceitando esta peculiar ponderação supressora de (tantos) direitos fundamentais ou assumindo o discurso contra direitos humanos para bandido e também para ímprobos (a falta de condenação, para ambos, é detalhe impertinente). 
Note-se bem: não somos contra a possibilidade de bloqueio cautelar (já a utilizamos ao subscrever ações de improbidade), e sim contra o uso indiscriminado e descuidado do instituto.

E qual a solução? Há várias, algumas dependendo de mudança legislativa e outras não. O ideal, a nosso ver, é que a lei estabelecesse que o bloqueio fosse deferido por prazo certo (três meses?), durante o qual o autor deveria promover a intimação de todos os requeridos. Findo este prazo (com ou sem a conclusão da intimação) o juiz teria outro (dois meses?) para decidir sobre o recebimento ou não da ação. Ultrapassado este prazo sem decisão ocorreria o desbloqueio automático. Caso recebida a inicial, o bloqueio poderia ser mantido pelo prazo máximo de dois anos, prorrogáveis por mais um ano, findo o qual só a sentença condenatória poderia mantê-lo.

Enquanto não vem mudança legislativa, acreditamos que a correta compreensão dos direitos fundamentais envolvidos é mais do que suficiente para impor ao juiz: um cuidado redobrado na decretação e na extensão da medida (precisa atingir mesmo a todos?); velar para a imediata intimação de todos; que reavalie cuidadosamente o bloqueio quando da decisão pela recepção da ação; que bloqueie apenas o montante necessário (é comum a indicação do valor total do contrato, ainda que o ilícito tenha afetado pequena parcela de sua execução); que respeite os bens impenhoráveis. Por fim, cabe aos tribunais atuar, de fato, como revisores constantes destas decisões.

Afinal, nem mesmo o combate à corrupção pode ser feito sem respeitar direitos dos acusados (como fez a ditadura no art. 8º do AI-5), uma vez que, quando admitimos a supressão de direitos fundamentais porque do outro lado o interesse é forte, damos um passo decisivo para que a supressão se torne uma banalidade.
 
* Conselheiro da OAB/RJ e doutorando em Direito Público pela Universidade de Coimbra

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