07/07/2014 - 15:14

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Por que os brasileiros não conf iam nas instituições públicas?

07/07/2014 - 15:14

Por que os brasileiros não conf iam nas instituições públicas?

Insatisfação da população motiva onda de manifestações e críticas ao funcionamento dos três poderes. Para estudiosos, momento é de crise de representatividade

AMANDA LOPES

Em outubro de 2014, mais uma vez os brasileiros irão às urnas para eleger um novo presidente da República, além de governadores, senadores e deputados federais e estaduais. As eleições acontecerão pouco mais de um ano depois das chamadas “jornadas de junho”, a série de manifestações deflagrada no meio de 2013 por passeatas contra o aumento da tarifa dos ônibus e que depois passaram a reunir diferentes bandeiras, todas demonstrando, de certa forma, a insatisfação de parte da população com o panorama político e social do Brasil.

 Hoje, a poucos meses do pleito, as manifestações parecem estar mais segmentadas, porém ainda há um clima de descontentamento no ar. Na esfera política, o principal indicativo talvez seja o índice de intenções de votos brancos e nulos – 13% na última avaliação feita pelo Ibope, em 19 de junho. Bem mais alto que os 8,7% registrados no primeiro turno de 2010. Outra pesquisa recente, realizada e ainda não publicada pelo Núcleo de Pesquisas em Políticas Públicas da Universidade de São Paulo (Nupps), revela dados bem mais alarmantes e que indicam que a insatisfação não diz respeito à rejeição a este ou aquele governo. A questão parece ser mais profunda. De acordo com o resultado, 76% dos brasileiros não confiam no Congresso Nacional, 63,5% não confiam no Poder Judiciário, 68% não confiam na polícia e 85% não confiam nos partidos políticos. 
 
 Para o cientista político José Veríssimo Romão Netto, que atua no Nupps, o estudo demonstra claramente a frustração da sociedade em relação ao funcionamento das instituições públicas. “Quando se vê corrupção, uma polícia mal treinada, o Congresso subordinado às vontades políticas e partidárias, e dominado pelo Executivo, uma Justiça que aplica penas brandas a pessoas que têm poder, ou um decreto presidencial que libera sexagenários de suas penas, quando se vê esse tipo de confusão, favorecendo alguns poucos em detrimento do conjunto da população, temos um problema de desconfiança acentuada”, afirma.

Um levantamento feito pelo Ibope também chama a atenção. Segundo a socióloga Ariadne Lima Natal, do Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo, na medição do último Índice de Confiança Social, pesquisa feita anualmente pelo instituto, em um total de 100 pontos, a polícia possuía 48 e o Judiciário, 46. “São números muito baixos e que estão relacionados, principalmente, com a ineficiência destas instituições”, diz ela.

Na visão do sociólogo Ignácio Cano, pesquisador do Laboratório de Análise da Violência da Universidade Estadual do Rio de Janeiro, o país vive uma crise no que diz respeito à legitimidade dos canais tradicionais de representação. “Há certo desencanto com a política tradicional: o Legislativo, sobretudo, mas também os sindicatos e a imprensa parecem ser cada vez menos capazes de representar os interesses da população. Existe a percepção de que os partidos, os políticos eleitos e muitas vezes os sindicatos defendem interesses e uma agenda próprios. O cenário, então, é de frustração geral. Penso que por isso as manifestações eclodiram no ano passado justamente em relação à Copa do Mundo, pois ela representa perfeitamente o contraste entre a imagem de um Brasil triunfante e feliz e o Brasil real, onde a vida não é fácil e os beneficiados parecem ser sempre uns poucos”, pondera.
 
Apesar da onda de descontentamento, ele não interpreta o momento como um sinal de falência das instituições democráticas. “A grande maioria das pessoas não quer derrubar a democracia representativa, quer melhorá-la. A resposta da presidente Dilma Rousseff no sentido de promover uma reforma política, que finalmente não vingou, deve ser lida como uma confirmação desse déficit de representação e uma tentativa de reduzi-lo”, destaca. 

Determinar as razões que levaram o país a este quadro ainda é, de acordo com o constitucionalista Guilherme Peres, consultor da Procuradoria da OAB/RJ, um desafio. Como fatores relevantes, ele cita a baixa qualidade média de nossa representação e a falta de compreensão, por parte da própria população, do papel da política na vida em sociedade. “Essa mistura pode levar a uma perigosa despolitização que, ao contrário de ajudar, acaba, potencialmente, agravando o problema: a política passa a atrair cada vez menos pessoas qualificadas e bem intencionadas, e há menos interesse na participação e fiscalização do poder público”, diz.

Perguntado sobre a forma como o Judiciário é visto, Peres considera que a expectativa da população cresceu muito a partir da crise nos demais poderes, mas que nem sempre ela é atendida. “O Judiciário também tem seus problemas, e graves, e é historicamente o poder ao qual é conferida a competência de controlar os atos dos demais. Assim, em tempos de dificuldade do Legislativo em acompanhar as mudanças e anseios da sociedade, ele acaba sendo tido como a tábua de salvação. Mas, ao provocá-lo, muitas vezes o cidadão depara-se com a morosidade, a ineficiência, as disputas políticas, as vaidades... Ou seja, mazelas bem semelhantes às dos outros poderes”, salienta. 

O juiz Rubens Casara, membro da Associação de Juízes para a Democracia, fala no mesmo tom. “A descrença no Poder Judiciário é esperada. Como percebeu Antonie Garapon [jurista francês], ele tornou-se o “guardião das promessas” descumpridas tanto pelos demais poderes do Estado quanto por particulares. O problema é que essas promessas, como, por exemplo, a redução da criminalidade a partir da aplicação da lei penal, revelam-se impossíveis”, observa.

Para Romão Netto, as consequências são outras. Ele acredita que, no contexto atual, o Judiciário assumiu funções que não deveriam ser suas, assim como o Executivo. “A judicialização da política é uma tentativa de se fazer justiça pela instituição judicial, já que o Congresso não dá conta. O Judiciário acaba legislando sobre cotas, anencéfalos, temas claramente do Parlamento. E o Executivo também cria seus decretos. Trata-se do Judiciário e do Executivo legislando, passando sobre a representação do povo”.
 
Cano concorda e defende que este é mais um indicador da crise de representação política: “Curiosamente, vários dos avanços dos últimos anos no Brasil, como o reconhecimento do casamento homossexual ou as políticas de quotas, vieram por decisão judicial, não legislativa”.

Em se tratando de seu papel regulador e por vezes punitivo, o Judiciário fica mais uma vez na berlinda. A lentidão com que ações são julgadas e a severidade das penas são frequentemente questionadas pela sociedade e isso, somado à falta de fé em outra instituição – a polícia –, criou brechas para o surgimento dos chamados justiceiros, pessoas que acreditam estar preenchendo a lacuna deixada pelo Estado ao fazerem justiça com as próprias mãos.

Para Cano, os casos de justiçamento estão associados à percepção de que o sistema de Justiça criminal não funciona. No entanto, esta não é a única motivação. “[A prática de justiçamento] não é apenas resultado de uma recente percepção da falência do sistema. Responde a uma longa tradição no Brasil de utilização da violência como forma de controle social, por parte do Estado, por um lado, e entre os cidadãos, por outro. Não podemos esquecer que, de acordo com pesquisas nacionais, aproximadamente 40% dos brasileiros concordam com a afirmação de que ‘bandido bom é bandido morto’”, ressalta. 

“Apostar na desconfiança nas instituições democráticas, nas omissões do poder público, como causa de fenômenos como o linchamento de pessoas me parece equivocado. Ao contrário, instituições democráticas nunca poderiam dar conta de desejos capazes de levar à destruição de seres humanos. Os linchamentos são sintomas da falta de uma cultura democrática, que desconsidera os limites inerentes ao Estado Democrático de Direito e nega a alteridade”, complementa Casara. 

Segundo Ariadne Lima, apesar da incapacidade das instituições públicas em garantir segurança e justiça ser uma das explicações mais recorrentes para a motivação dos justiçamentos, considerar esses atos como uma espécie de protesto é um erro.  “Os linchamentos são crimes. Embora no discurso muitas vezes os linchadores afirmem agir para promover a segurança local, na prática o uso a violência impede qualquer diálogo e gera mais insegurança. Os protestos e as manifestações, por outro lado, são o exercício de um direito cujo principal objetivo é reivindicar e chamar a atenção para uma questão. A finalidade de um protesto é colocar algo em discussão, é promover o diálogo”, compara.

A socióloga defende, ainda, que por mais que os linchadores por vezes acreditem estar fazendo justiça, a hipótese de legitimidade desses atos não pode ser sustentada de maneira alguma. “A leitura é que, tomados pelo sentimento de medo e insegurança aliado à percepção de impunidade e ainda em um contexto de desconfiança com relação à capacidade do Estado de cumprir suas funções, algumas pessoas agiriam por conta própria. Em grande medida, sim. Mas vivemos em uma sociedade em que valores e princípios democráticos básicos como o direito à vida e à dignidade não são vistos como direitos universais. A alegação de impunidade que motiva o linchamento não está calcada apenas na ausência ou ineficiência das instituições, mas principalmente na ideia de que nossas penas são fracas e brandas porque não fazem o criminoso sofrer”, critica ela.
 
Os clamores pelo endurecimento das leis estão, de fato, presentes no cotidiano do Brasil, inclusive em parte da imprensa, ainda que a legislação penal do país seja considerada avançada por juristas. Na opinião de Peres, a demanda é sinal de desconhecimento. “Em matéria penal, a descrença e a reivindicação por leis mais rígidas me parecem de fato infundadas, fruto da incompreensão do papel e do modo de funcionamento da jurisdição penal”, observa. 

De acordo com Casara, o endurecimento da legislação penal é apresentado como uma resposta rápida aos mais variados problemas sociais, mas a verdade é que as leis penais são incapazes de reduzir a criminalidade. “Por vezes, por ignorância, em outras, por má fé, vende-se a ideia de que os mais complexos problemas podem ser descontextualizados e redefinidos como meros casos penais.
 
Legisladores e juízes passam a atuar a partir da crença de que a criação e aplicação de leis penais são capazes de reduzir a criminalidade e servir de instrumento à pacificação social. Entretanto, essa crença não encontra suporte em pesquisas empíricas. No Brasil, esse clamor pelo endurecimento da legislação penal, capaz de sensibilizar políticos oportunistas em busca de votos, desconsidera os estudos sérios sobre a efetividade das penas e, em especial, o quadro já caótico do sistema penitenciário”, destaca.
 Cano vai mais longe, afirmando que tal desejo advém de uma contradição: “Muita gente clama por justiça, mas apoia que a lei seja atropelada, supostamente como uma forma de defender a sociedade. Ou reclama da corrupção e depois vota em candidatos notoriamente corruptos. Essas pessoas querem ser modernas e habitar num país de primeiro mundo, porém estão dispostas a jogar o Estado de Direito pelo ralo de vez em quando”. 

Como alternativas para melhorar o cenário de crise nas representações, o sociólogo levanta a bandeira da reforma política. “O impacto dos protestos deveria ser, idealmente, a reforma do sistema de representação, para que fosse mais eficiente e democrático. Infelizmente, isso não aconteceu ainda. Uma reforma política é muito necessária para melhorar a representatividade do poder público. Por outro lado, o controle social em relação aos órgãos do Executivo é também essencial”, analisa.

 Na opinião de Casara, desfazer os mitos em torno das instituições é o primeiro passo a ser dado: “O caminho exige o desvelamento de crenças inadequadas à democracia, a conscientização da população acerca de seus direitos e do funcionamento das instituições”. 

Já Romão Netto enumera o fortalecimento das discussões políticas, ainda nas escolas, e a transparência na política como exemplos de iniciativas que podem funcionar. “Discutir parâmetros ético-filosóficos nas escolas, que levem os jovens em processo de formação a refletir que a cidadania tem um posicionamento ético envolvido por parte do individuo poderia ajudar, mas isso a médio e longo prazos. Fortalecer as instituições de controle, como corregedorias e tribunais de contas, também seria uma bela tarefa”, conclui.

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