07/07/2014 - 14:36

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No TJRJ, cada servidor trabalha por três

07/07/2014 - 14:36

No TJRJ, cada servidor trabalha por três

Falta de funcionários nos cartórios da primeira instância é tema da campanha Mais Justiça este mês. Carência é apontada como principal causa da atual morosidade do Judiciário
 
RENATA LOBACK

Processos paralisados, pilhas de petições para serem juntadas, sobrecarga de trabalho, atrasos nas citações e lentidão no andamento dos feitos são os sintomas da falta de serventuários nos cartórios do estado. Para os advogados e magistrados, é esta escassez de mão de obra a maior responsável pelo atravancamento das serventias. Em seu terceiro mês, a campanha Mais Justiça, empreendida pela Seccional, apresenta um retrato das consequências e possíveis causas da carência de servidores nas comarcas.
 
De acordo com dados do próprio Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJRJ), há 2.100 vagas em aberto no quadro atual. Segundo o coordenador-geral do Sindicato dos Servidores do Poder Judiciário do Estado do Rio de Janeiro (Sind-Justiça), Alzimar Andrade, em vez de convocar os aprovados nos concursos para suprir este déficit, o TJ tem se valido cada vez mais da contratação de funcionários terceirizados, comissionados e estagiários. “Temos, hoje, pouco menos de 14 mil serventuários. Terceirizados, comissionados e apadrinhados já somam mais de cinco mil. Número igual ao de estudantes. São dez mil pessoas que não prestaram concurso para ingressar nos quadros da corte, pondo em cheque a qualificação do serviço prestado. Além disso, no caso dos estagiários, há uma série de impedimentos que os limitam em suas funções. Eles só estão no cartório para fazer número”, afirma Andrade.

A situação tende a piorar, avalia o coordenador do sindicato. Em convênio recém-assinado entre a presidência do TJ e o governo do estado, estudantes do ensino médio poderão ingressar como estagiários. “Para quem tem uma ação correndo na Justiça isto será uma tragédia. Colocar crianças de 15 e 16 anos no cartório é um absurdo. Assim como os demais estagiários, eles também não poderão processar, não terão responsabilidade penal e nem poderão responder por seus erros, como um desvio de processo ou sumiço de documentos. Para o cidadão que precisa ver sua ação andando, a chegada desses estudantes não terá valia alguma”, explica. Em três anos, o número de estagiários subiu de 1.519 para mais de cinco mil, enquanto o de servidores caiu 2% no mesmo período. 

Segundo o presidente da OAB/RJ, Felipe Santa Cruz, além de não ser correto substituir a força de trabalho de um servidor pela de um estagiário, o TJ negligencia a qualidade do serviço que será prestado nos cartórios. “Em um estágio, o estudante deveria aprender, de forma assistida, a rotina de sua futura profissão. Dentro dos cartórios esses estagiários não aprendem a advogar, e sim a fazer um trabalho que por lei é de responsabilidade do serventuário”, analisa Felipe.

Na Leopoldina, os advogados procuraram a diretoria da subseção para relatar remarcações constantes nas audiências por falta de citação dos réus. Em reunião realizada no dia 16 de junho entre o presidente da Ordem local, Frederico Mendes, e a juíza responsável pelo X Juizado Especial Cível (JEC) do Fórum da Leopoldina, Mariana Tangari Baptista, que acumula o Núcleo de Primeiro Atendimento e o Núcleo de Distribuição, Autuação e Citação (Nadac), a má prestação de serviço dos estagiários e a escassez de funcionários foram apontadas como as principais causas do problema. De acordo com a magistrada, em maio, o funcionário responsável pelas citações tirou férias e os estagiários que o substituíram não se mostraram capazes de realizar o serviço cartorário de emissão postal. Com isso, diversas audiências tiveram que ser remarcadas. 

Segundo o coordenador do Sind-Justiça, são quase diárias as denúncias levadas ao conhecimento do tribunal sobre estagiários processando e emitindo mandados de pagamento, guias de depósito judicial e certidões nos autos. “Houve o caso recente de um processo que chegou às mãos de um desembargador com despacho assinado por um estagiário. O desembargador alertou o magistrado para o fato de que todo o processo poderia ter sido anulado por conta deste erro”, contou Andrade.

No entanto, aponta o sindicato, os juízes permitem a atuação dos estagiários nos processos, porque sabem que com o número atual de servidores e sem o auxílio dos estudantes a situação seria de paralisação total dos cartórios. 

“O que o TJ faz é um declarado desvio de função. Eles pegam uma pessoa que não fez concurso e ganha menos e a colocam para atuar como se fosse mais um servidor. Em nenhuma serventia há um acompanhamento do estágio como manda a lei. A quantidade de estudantes também é acima do que a lei permite, mas o tribunal faz vista grossa porque é assim que economiza. Ao passo que um servidor recebe de R$ 2 mil a R$ 3 mil de salário, um estagiário ganha R$ 600 de bolsa-auxílio. Tanto o pagamento dos estudantes quanto o de terceirizados não entram na folha de pagamento do TJ, o dinheiro sai de um fundo especial. Deveria vir do Tribunal de Justiça o exemplo, mas o que observamos é a corte arrumando um jeitinho para fugir da Lei de Responsabilidade Fiscal”, aponta o coordenador-geral do Sind-Justiça.

No caso específico da Leopoldina, ao menos uma boa notícia foi gerada. De acordo com Mendes, a juíza comprometeu-se a agendar, dentro da pauta atual, todas as audiências remarcadas por conta dos erros dos estagiários. “Além disso, ela declarou que todas as medidas cabíveis serão tomadas, incluindo uma reformulação do setor que apresentou problemas”, conta o presidente da 58ª Subseção. Naquele fórum, os funcionários estão trabalhando aos sábados para colocar em dia os atrasos. 

A sobrecarga nas tarefas dos funcionários é evidente na maioria das comarcas, confirma o assessor da presidência da OAB/RJ e coordenador da campanha Mais Justiça, Willian Muniz. “A demora no processo está diretamente ligada à falta de servidores e de melhores condições de trabalho na primeira instância”, aponta.

Em Cachoeiras de Macacu, o fórum novo, com o incrível número de 32 banheiros, tem apenas dois funcionários em cada um dos dois cartórios. Na 1ª Vara Cível da comarca, o número de processos já ultrapassa 38 mil. “Imagine esta demanda sob a responsabilidade de apenas dois servidores”. Mais do que uma sobrecarga, todos os direitos trabalhistas ficam prejudicados. Como tirar férias ou licença e deixar apenas uma pessoa no cartório?”, indaga Muniz.

No dia 11 de junho, o Sind-Justiça organizou uma paralisação de 24 horas para reclamar das condições de trabalho dos servidores. Para o coordenador-geral do sindicato, a atual gestão do TJ tem como foco de sua administração somente a magistratura, “como se a Justiça fosse feita apenas de juízes”. Nos últimos meses, diz ele, a categoria dos servidores assiste, assustada, à crescente escalada de benefícios e auxílios concedidos aos magistrados. “Nosso intuito com a paralisação foi o de buscar junto ao tribunal o uso racional do orçamento. Tudo que sai é somente para juízes”, relata Alzimar Andrade.

As principais reclamações dos servidores são o auxílio-moradia da magistratura, no valor de R$ 5.303 (maior até do que o salário base dos serventuários), o auxílio-creche, sem teto estipulado, a venda de férias e licenças (vedadas aos servidores) e o pagamento no mês trabalhado, enquanto os funcionários só recebem no mês seguinte.

A diferença entre juízes e servidores é classificada por Andrade como um “apartheid social” dentro do TJ. “Lutamos por dignidade e respeito. Há muitos fatores que desestimulam o trabalho hoje em dia”, analisa.

São João de Meriti é a prova de que serventuários capacitados e estimulados fazem a diferença nas serventias. Desde que o novo responsável pelo cartório assumiu o Juizado Especial Cível, após a saída de uma “funcionária problema”, a presidente da subseção local, Júlia Vera Santos, afirma que a situação tem melhorado bastante, mas “ainda não é a ideal justamente pela falta de pessoal”. 

“São apenas 12 funcionários no cartório e três no gabinete, quando o ideal, apresentado pela magistrada responsável pela serventia, seria de 15 pessoas só para o cartório. Isso porque a média de distribuição mensal no JEC é de quase 1.500 autos e há um acervo de 17.321 processos. Mesmo assim conseguimos sair de uma situação de caos. Tínhamos quase 20 mil processos parados e 5.744 petições para serem juntadas”, detalha a presidente. Hoje, o número de petições aguardando juntada no I JEC de São João não chega a 1.500.

Júlia Vera reuniu-se em maio com as magistradas do I JEC e da 4ª Vara Cível, Patrícia Cogliati e Lizia Maria do Amaral Figueira, respectivamente, para buscar soluções para a morosidade nos trâmites. As duas juízas, conta a presidente, atribuíram à falta de servidores a culpa pela lentidão. “Um funcionário está trabalhando para suprir o serviço de outros três e o Tribunal de Justiça não aponta uma saída para esta situação”, relata.

A subseção lançará um abaixo-assinado pedindo providências sobre a carência de funcionários e juízes na comarca. Há receio, tanto dos advogados quanto dos próprios servidores do JEC, de que quando o TJ instalar o II Juizado da comarca – já criado por lei – esses servidores sejam divididos entre as duas serventias. “Precisamos muito de um segundo juizado, mas será um problema se tivermos que perder funcionários no primeiro JEC. Hoje, já trabalhamos com escassez”, salienta.

A eficiência dos concursos do TJ para preencher as vagas de servidores em aberto é posta em dúvida pelo Sind-Justiça. Apesar da carência notória que ultrapassa dois mil servidores, o tribunal não costuma chamar todos os aprovados nas provas que realiza, observa Andrade.

Recentemente, expirou um concurso de técnico e analista com pouquíssimas pessoas convocadas. Mesmo assim, o TJ já abriu edital para uma nova prova. “Fica parecendo que os concursos são para arrecadar dinheiro, e não para preencher as vagas. Vamos brigar por concursos que tenham de fato convocações. As vacâncias existentes são muitas. É muito complicado para o funcionário realizar um serviço de qualidade, e com rapidez, tendo que trabalhar por três”, conclui o coordenador do Sind-Justiça.

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