03/08/2018 - 21:03

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Lei Seca: efeito pedagógico positivo e quase nenhuma efetividade penal

03/08/2018 - 21:03

Lei Seca: efeito pedagógico positivo e quase nenhuma efetividade penal

Redução na taxa de mortes no trânsito é unanimemente reconhecida, mas constitucionalidade e consequências legais ainda suscitam polêmica entre advogados, juízes e promotores. Maioria dos processos acaba arquivada

Em um ponto todos concordam: a Lei nº 11.705/2008, conhecida como Lei Seca, principalmente em seu caráter pedagógico, é positiva e sua divulgação e aplicação vêm produzindo redução na taxa de mortes no trânsito. No Rio de Janeiro, onde os resultados foram mais significativos, os dois primeiros anos de vigência, a partir de 2008, representaram redução de 32% nesses óbitos, para uma média nacional de menos 6,2% mortes em relação ao período anterior. Em números absolutos, 2.302 vidas foram preservadas, segundo as estatísticas divulgadas pelo Ministério da Saúde, em 2010.

A concordância acaba aí, e a polêmica se instala quando a constitucionalidade da lei e sua efetividade, no aspecto penal, são postas em discussão. A nova redação dada pela Lei Seca ao artigo 306 do Código de Trânsito Brasileiro (Lei 9.503/1997) — que tipifica como crime dirigir tendo bebido o equivalente a seis decigramas ou mais de álcool por litro de sangue (dois chopes, por exemplo) — vem provocando divergências entre advogados, promotores e juízes, tendo como resultado o arquivamento de processos no Judiciário. Segundo levantamento publicado pelo jornal O Globo recentemente, dos 1.053 processos que deram entrada no Tribunal de Justiça do Rio entre março de 2009 (quando começou a Operação Lei Seca) e junho passado, relativos ao crime de embriaguez no trânsito, apenas seis acabaram em condenações.

O juiz da 11ª Vara Criminal, Alcides da Fonseca Neto, é taxativo ao afirmar que a nova redação dada ao artigo 306 é a origem dos problemas e da impunidade. “Quase sempre, quando o legislador resolve disciplinar algo do Direito Penal, o faz de modo precipitado, preocupado em agradar a opinião pública, ou a opinião publicada, e acaba piorando as coisas”, critica. O dado de concentração de 0,6 decigramas, segundo o magistrado, complicou a situação, por exigir, para comprovação, exame técnico – pelo bafômetro – que não se pode obrigar ninguém a se submeter, uma vez que é garantia constitucional o direito de não produzir prova contra si.

“Antes da mudança, a autoridade levava o motorista para a delegacia, fazia-se o exame clínico imediato e depois o Ministério Público verificava se era caso de denunciar, ou não, sendo responsável pela prova de que aquele crime contra a segurança viária tinha causado perigo a alguém. Havendo ação penal, o juiz decidia pelas provas”, comenta Alcides Neto.

Com a nova redação, segundo ele, deu-se “clara violação à Constituição no que diz respeito ao princípio da intervenção mínima, segundo o qual o Direito Penal só pode atuar quando outras formas de resolução de conflitos tiverem falhado. A lei, em seu artigo 165, diz que dirigir sob efeito de álcool ou outras substâncias psicoativas é infração administrativa gravíssima. “Ora, se o Direito Administrativo já resolve a questão, não há necessidade de que o mesmo dispositivo transforme aquela conduta administrativa em conduta criminosa”, observa o juiz. Outro ponto, explica, é que todo crime depende da violação de um bem jurídico tutelado que, no caso, é a segurança viária.

A antiga disposição da lei dizia que, para ser enquadrado, o motorista deveria, com sua condução, gerar risco a alguém ou à coletividade. “Esse tipo anterior era de crime concreto, e a nova redação o transformou no que se chama crime de perigo abstrato. No primeiro, há a necessidade de efetiva demonstração de um perigo e, no segundo, é a lei que o presume. Mesmo assim, precisa haver a demonstração de que aquele comportamento venha a lesionar um bem jurídico”.

O motorista que, mesmo dirigindo normalmente, seja parado numa blitz, sopre no bafômetro e esteja com concentração superior à permitida automaticamente se transforma em criminoso, porque violou o artigo 306, comenta. Para Alcides Neto, “isso é completamente desproporcional”. Na opinião dele, o condutor deve ter a carteira recolhida e sofrer todas as sanções administrativas, mas não responder por um crime. “Veja o absurdo: a lei dá àquele motorista o poder de decidir se vai se tornar um criminoso ao soprar no bafômetro. É claro que as pessoas, cada vez mais, não querem soprar”.

Alcides Neto informa que ele e a maioria dos magistrados vêm rejeitando as denúncias. “Nas hipóteses que têm sido trazidas para o Judiciário, em que o motorista está dirigindo normalmente e, ao ser parado numa blitz, sopra o bafômetro e é acusada quantidade superior a 0,6 decigramas, venho rejeitando as denúncias, por inépcia, porque não descrevem um crime, ou seja, a violação de um bem jurídico”. Quase todas as câmaras criminais vêm decidindo de acordo com esse entendimento, afirma. O juiz diz ainda que o Superior Tribunal de Justiça tem rejeitado todos os processos quando não há prova técnica pelo bafômetro ou por exame clínico.

“Acho que a Lei Seca deve acontecer, e até com mais frequência, para impedir efetivamente que pessoas irresponsáveis dirijam embriagadas. Mas em termos administrativos. Para haver crime é preciso que o motorista dirija de forma anormal, por exemplo, fazendo ziguezagues, porque aí fica demonstrado o perigo para a segurança viária e com isso se justifica a incriminação”, defende.

Para ele, a imprensa atua no sentido de criminalização de condutas, o Legislativo cria novos delitos e é o Judiciário que tem que resolver. “É o que é chamado de estética Disney, o bem contra o mal, coisa que não existe no mundo real”, critica. A impunidade no trânsito não será resolvida com novas leis, afirma. “Será quando o Executivo atuar, fazendo cumprir a norma administrativa. Os Detrans se omitem, não funcionam. A carteira deve ser apreendida, o procedimento instaurado e, depois do devido processo legal, que o motorista infrator tenha sua carteira cassada ou suspensa, além de pagar multa”.

O magistrado lembra que, no que se refere a lesão corporal ou homicídio culposo, a legislação do trânsito é mais severa do que o Código Penal (CP). No segundo caso, o artigo 302 prevê detenção de dois a quatro anos, e suspensão ou proibição de se obter a permissão ou a habilitação para dirigir. No CP, a pena é de até três anos.

No Ministério Público estadual, o procurador-geral de Justiça, Cláudio Lopes, reconhece a existência de divergência doutrinária e jurisprudencial em torno da Lei Seca, em seu artigo 306. Para ele, no entanto, sua finalidade e a contribuição que tem dado para a redução de mortes no trânsito a tornam válida. Em certos casos, quando os promotores opinam pela inexistência de crime e os juízes discordam, o processo é remetido para o procurador-geral dirimir o conflito, e Claudio tem refeito os pareceres interpretando pela constitucionalidade da lei.

“Parece razoável que a lei possa presumir o perigo para a segurança viária. Se o motorista bebeu em quantidade acima do tolerável, deve responder criminalmente”, salienta. Ele também diz que a negativa de soprar o bafômetro não se insere nas garantias individuais previstas na Constituição. “Acho isso simplório. Defender isso é desproteger a vida e a integridade das pessoas. O artigo 5º da Constituição não é empecilho em relação ao crime previsto, e a recusa em soprar o bafômetro passa a ser considerada indício contra o motorista”, argumenta.

Ele concorda com o juiz, no entanto, ao considerar que a antiga redação do artigo 306 era melhor, e facilitava a aplicação da lei. Para suprir a deficiência, o procurador-geral é favorável ao endurecimento das penas para o motorista que bebe e provoca acidente com morte no trânsito. “Haveria esse agravante, com pena de reclusão de cinco a 18 anos”. Segundo Claudio, a severidade da punição “teria um efeito mais importante, do ponto de vista pedagógico e de prevenção. As pessoas iriam pensar duas vezes antes de beber e dirigir”.

O presidente da Comissão de Acompanhamento e Estudo da Legislação do Trânsito da OAB/RJ, Fábio Soito, compartilha a percepção positiva da Lei Seca, principalmente por seu caráter pedagógico. Como aconteceu nas normas que instituíram a obrigatoriedade do cinto de segurança e da cadeirinha para bebê, Soito acredita na ideia de conscientização das pessoas para os riscos de beber e dirigir.

“A lei veio defender o interesse coletivo de uma maneira bem incisiva. Ocorre que temos os princípios constitucionais. O Poder Público não tem o poder de obrigar o cidadão a fazer prova contra si”, observa. “A grande discussão sobre a Lei Seca é com relação ao caráter probatório da infração ou o que é tipificado como crime”.

“A simples negativa do condutor de fazer o teste no bafômetro põe por terra qualquer tipo de meio probatório para comprovar o teor alcoólico”, continua. “Isso coloca o agente de trânsito em situação de não ter condições para o encaminhamento do condutor para testes médicos e técnicos. O Estado não oferece esse suporte pericial e de pessoal e, por mais que o agente diga que o motorista está embriagado, essa prova é frágil”, diz.

Quando o condutor é parado na blitz e se nega a soprar o bafômetro, o agente pode multá-lo (R$ 957,70), apreender a carteira e o veículo. “O caráter pedagógico está caracterizado, e por isso tivemos grande redução de acidentes. Porém, é preciso mais para diminuir a agressividade no trânsito, as mortes”, argumenta o advogado, para quem é preciso que o Executivo invista em campanhas educativas massivas com os valores arrecadados em multas, que já ultrapassaram R$ 45 milhões no Rio de Janeiro.


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