09/02/2015 - 15:30

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Caminhos pouco trilhados da história de nossas leis

09/02/2015 - 15:30

Caminhos pouco trilhados da história de nossas leis

*Amílcar D'avila de Mello

Contrariando a crença de que as primeiras manifestações do Direito romano-germânico na Terra Brasilis foram lavra de escrivães portugueses, a autoria dos primeiros textos jurídicos redigidos nesta região coube aos letrados a serviço da Coroa castelhana. Essa façanha aconteceu nas primeiras quatro décadas do Século 16 e teve como palco o vasto, selvagem e exótico litoral brasileiro. No ancoradouro da feitoria de Pernambuco, no arraial hispano-guarani da Ilha de Santa Catarina, e na aldeia luso-tupi de São Vicente, os pioneiros espanhóis que protagonizaram tais episódios interagiram de perto com os pouquíssimos cristãos que viviam nesses lugares, rodeados por indígenas antropófagos, seus aliados e, em muitos casos, parentes. A utilíssima herança dos juristas da Roma Antiga, compilada em Bizâncio e mantida em estado latente durante séculos, até ser aperfeiçoada e resgatada na Idade Média e no Renascimento, chegava, assim, a terras e povos que Rômulo e Remo jamais imaginariam existir.

As raras peças reunidas em Primórdios da Justiça no Brasil: Coletânea de documentos castelhanos do século XVI (editora Tekoá et Orbis) fornecem informações que nos ajudam a entender a vida daqueles aventureiros que estavam distantes da pátria, mas ao alcance do longo braço da lei. Os documentos reunidos nessa coletânea são divididos em dois conjuntos. O primeiro, relativo à expedição do célebre navegador anglo-veneziano Sebastião Caboto, é anterior a 1534, ano de instauração das capitanias hereditárias, regime que deu início à colonização portuguesa do Brasil. Caboto era um lobo-do-mar. Em 1497, apenas cinco anos depois da descoberta da América, ele navegou, sob bandeira inglesa, à região dos Bacalhaus, no litoral canadense. Ainda servindo à Coroa inglesa, realizou outras viagens descobridoras. Posteriormente, tornou-se cartógrafo de Henrique VIII e acompanhou o exército que este enviou para ajudar o rei aragonês Fernando II a lutar contra os franceses. Em 1518, Caboto passou a servir à Coroa castelhana.

Despachada pelo imperador Carlos V na esteira da esquadra de Fernão de Magalhães para garantir a posse das Ilhas das Especiarias que lhe coubessem pelo Tratado de Tordesilhas, a armada de Sebastião Caboto zarpou rumo à Ásia em 1526. Ainda na Espanha, impasses políticos começaram a deteriorar as relações entre Caboto e alguns de seus oficiais. Boatos de que estes tramavam sua morte e incitavam a marujada a motim levaram esse comandante a abrir um processo secreto contra os supostos conspiradores. Um deles era Martín Méndez, herói circum-navegador que retornava à Ásia como lugar-tenente de Caboto. Por já ter escolhido outra pessoa para atuar como seu braço direito, este ficara contrariado com a nomeação régia de Méndez e desenvolveu por ele uma grande antipatia. Miguel de Rodas, o piloto-mor da armada, era, como Méndez, veterano da expedição de Magalhães. Ele queixava-se de que suas ordens não eram acatadas pelos subalternos, e culpava Caboto por isso. Mas o maior desafeto de Sebastião Caboto era o capitão Francisco de Rojas. Durante os preparativos da armada, o nome deste fidalgo fora cogitado para comandá-la. As relações entre esses três homens e Caboto pioraram a partir das ilhas Canárias e tornaram-se insuportáveis em Pernambuco. 

Naquela feitoria, Caboto deixou-se contagiar pelos relatos dos portugueses sobre a existência de grandes riquezas no interior do continente. Informações detalhadas sobre tais tesouros poderiam ser obtidas com náufragos que viviam na ilha dos Patos, a atual ilha de Santa Catarina. Rojas era porta-voz dos que se opunham ao plano do comandante de desviar a rota e fazer escala em Santa Catarina. A vontade de Caboto prevaleceu após ele colher – e manipular – os pareceres de outros oficiais. Rojas, Méndez e Rodas foram afastados de suas funções e detidos. Suas petições de soltura foram ignoradas e, em 1527, os três foram desterrados na ilha de Santa Catarina. Martín Méndez e Miguel de Rodas morreram afogados tentando fugir da ilha. Rojas foi libertado de seu desterro entre os carijós e levado para São Vicente. Dentre os diversos documentos redigidos em 1530 naquela aldeia (que logo se tornaria vila e o primeiro município brasileiro), esse capitão outorgou a Gonçalo da Costa, seu anfitrião e protetor, a primeira procuração escrita no Brasil.
 
Os documentos que compõem o segundo conjunto desta coletânea foram escritos na ilha de Santa Catarina pelos letrados da expedição de Alvar Núñez Cabeza de Vaca, em 1541. Primeiro governador oficial dessa ilha e comandante da imensa província do Rio da Prata e do Paraguai, Cabeza de Vaca carregava em sua bagagem a experiência das guerras travadas contra os franceses na Itália, e de quase uma década de cativeiro entre os indígenas que, ironicamente, ele pretendera conquistar na América do Norte. Ele e três outros sobreviventes da sua malfadada expedição percorreram, a pé, parte do Sul e do Sudoeste dos atuais territórios dos Estados Unidos e do Norte do México. Nessas formidáveis andanças, eles foram os primeiros europeus a ver, por exemplo, os bisontes e o rio Mississípi.

Dentre os autos redigidos pelos operadores da Justiça no Porto de Vera (o arraial que Cabeza de Vaca mandou construir onde hoje se situa a cidade de Florianópolis), encontramos: intimações para depor por crime de homicídio, sequestro dos bens do homicida revel, furto, apropriação indébita, reintegração de posse, difamação, termos de reconhecimento de dívida e uma ordem de restrição destinada a manter um homem afastado de sua amante.
 
O livro destina-se a leitores interessados em percorrer caminhos pouco trilhados pela historiografia oficial. Eles poderão, assim, vislumbrar outras linhas de força que ajudaram a moldar a sociedade brasileira. Seu foco, no entanto, são os membros da comunidade jurídica, que serão instigados a conhecer a saga dos desbravadores da sua profissão no território que hoje constitui nosso país.  

*Autor de Primórdios da Justiça no Brasil

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