Veicula-se na imprensa a ação de danos morais proposta por dois senhores, que, ainda garotos, em 1972, tiveram a sua imagem exposta na capa do LP clássico Clube da Esquina, de autoria dos compositores Milton Nascimento e Lô Borges. Pensava-se, popularmente, que a foto, que se tornaria icônica da música popular brasileira daqueles anos setenta, retratasse Milton e Lô. Na verdade, a imagem era dos dois moradores de uma fazenda, em Minas Gerais, frequentada pelos compositores e visitada casualmente pelo fotógrafo, hoje já falecido. Sem entrar no mérito da ação, ocorre refletir sobre a necessidade de contextualizar-se o comportamento social de acordo com a cultura de cada época. Não havia em 1972 previsão constitucional ou legal do direito à imagem ou aos danos morais; não havia computadores, celulares ou que tais. Não havia rede social que propagasse tais imagens. Será possível avaliar os efeitos da publicação de imagem infantil, hoje justamente hostilizada, com base na percepção que temos atualmente?

De maneira geral, e sem adentrar nos elementos de tal processo judicial, a verdade é que, à época da publicação daquela foto, não se via qualquer obstáculo ou maldade na circulação de imagens alheias, muitas vezes tomada como homenagem aos fotografados. Fotografavam-se famílias na praia, no parque, nas ruas. Fotografias de crianças eram estampadas na primeira página de jornais ou em publicidade de margarinas. Não há dúvida que, aos retratados, haverá sempre a garantia constitucional de impedir a circulação de suas próprias imagens.

De todo modo, à parte a eventual prescrição de pleitos indenizatórios, será que se justificaria a pretensão indenizatória depois de tanto tempo em relação a algo que à época se considerava socialmente aceitável e sem que se demonstre o impacto patrimonial então representado? Por outro lado, haveria nesse caso lucro obtido ilicitamente (lucro da intervenção, que então não se reconhecia na técnica jurídica) na utilização de imagem de pessoas desconhecidas em álbuns gravados por artistas consagrados?

O episódio lembra o processo movido pelo antigo jogador do Flamengo, João Batista de Sales, conhecido como Fio Maravilha, que ingressou, nos anos oitenta do século passado, com ação de perdas e danos, julgada improcedente, contra o cantor e compositor Jorge Ben Jor, que o havia homenageado com letra a ele dedicada. A canção descrevia, com emoção, o “gol de placa” marcado por Fio na vitória do Flamengo por 3 X 2 sobre o Benfica no Maracanã, em janeiro de 1972 – perto, portanto, do lançamento do álbum Clube da Esquina: “Tabelou, driblou dois zagueiros, deu um toque, driblou o goleiro; só não entrou com bola e tudo porque teve humildade em gol (...)”. E concluía com o refrão, que imortalizaria o jogador – hoje entregador de pizza em Nova York, onde vive –, na memória do futebol brasileiro: “Fio Maravilha, nós gostamos de você; Fio Maravilha, faz mais um pra gente ver”. A improcedência da ação foi confirmada pelo TJ/RJ, merecendo belo acórdão que negou, à época, a existência de dano e de nexo causal. O jogador, arrependido da propositura da ação, pediu publicamente desculpas ao compositor, que o desculpou, embora, por precaução, tenha alterado o refrão, em sacrifício à beleza do verso, substituindo a evocação a “Fio Maravilha” por “Filho Maravilha”, como ainda hoje é cantada.

Ao longo do tempo, a expansão da litigiosidade parece sem limites e a pretensão por danos morais banalizou-se, acabando por se refletir na redução das indenizações conferidas pelos Tribunais. Sacrifica-se a resposta judicial a lesões realmente dolorosas, em razão da multiplicação de ações que suscitam o tratamento massificado das pretensões em juízo, implicando certa tendência a uma espécie de tabelamento das condenações de acordo com os bens lesados.

A Justiça deve lidar com a circunstância de que as frustrações individuais são incontroláveis e que a leitura de fatos pregressos se dá frequentemente com as lentes do rancor, aguçadas pela alteração de contexto das relações sociais, cuja dinâmica se modificou radicalmente nas últimas décadas.

Foram notáveis e alvissareiras as conquistas contabilizadas nas relações sociais em prol da concretização da igualdade de a solidariedade. Nada obstante, sem prejuízo da necessidade de punição de criminosos a qualquer tempo e da repressão aos malfeitos, a valoração do comportamento humano não pode prescindir do seu contexto histórico e cultural. Sem tal contextualização, mostra-se impossível a avaliação equânime dos fatos e da injustiça dos danos.

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