Contardo Calligaris, de quem sou leitor assíduo, dedicou seu artigo na Folha de S. Paulo do dia 5 de setembro de 2019 ao que considera A sanha legisladora. Como o título enuncia, o texto opõe-se vigorosamente à voracidade regulamentadora do Estado. Segundo o autor, “melhor seria que a lei enunciasse princípios e deixasse que os juízes os aplicassem”. A proposta tem por premissa a constatação de que “a vida concreta é complexa demais para ser regrada por normas positivas detalhadas”. Diante disso, o magistrado estaria mais apto que o legislador para, diante do caso concreto, ajustar o princípio às necessidades de cada pessoa. Nessa mesma linha, Calligaris critica o estabelecimento de limites fixos de idade para as presunções legais de incapacidade dos menores. Um adolescente de 14 anos poderá ser mais maduro que outro de 15 anos e ao magistrado caberia definir o real grau de sua capacidade para fins de excluir, por exemplo, a presunção de estupro de vulneráveis prevista no Código Penal.

O tema, recorrente, sob diferentes matizes, na teoria da interpretação, se associa à tormentosa questão da segurança jurídica, entre a técnica regulamentar e a dos princípios. A hipertrofia legislativa, contudo, é consequência da complexidade da vida contemporânea, e não a sua causa. Já nos anos 1970, um autor italiano aludiu ferozmente ao que chamou orgialegiferante, mas o certo é que os princípios, só por si, não são capazes de exprimir o consenso social acerca dos padrões de comportamento socialmente aceitos.

Bem o demonstra a recente apreensão de livros, contendo o propalado beijo gay, solicitada pelo prefeito Marcelo Crivella. Considerada pela opinião pública como verdadeira censura praticada pelo prefeito pastor, a apreensão foi determinada pela instância mais elevada do Poder Judiciário do Estado do Rio de Janeiro, por intermédio de seu ilustre presidente. Em seguida, dois ministros do Supremo Tribunal Federal reformaram a decisão do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro. Vale dizer, a despeito dos princípios constitucionais da liberdade de expressão e da igualdade, e sem prejuízo da não recepção, desde a Constituição da República de 1988, dos dispositivos da Lei de Imprensa que autorizavam a censura, um abismo se verificou entre as visões dos dois tribunais. Daqui a insuficiência da valoração subjetiva de cada magistrado para fundamentar suas decisões.

De fato, a tão almejada segurança jurídica não se obtém nem com o apego servil à técnica regulamentar, nem com a atribuição ao magistrado de absoluta liberdade de valoração principiológica. No primeiro caso, pautado pelo silogismo próprio da subsunção, o magistrado se esquiva do dever de fundamentação e do controle social de suas decisões, transferindo a sua responsabilidade para o legislador, a quem seria dada a última palavra quanto às escolhas morais da sociedade. Trata-se de procedimento a ser repelido, por criar falsa segurança, com base em ilusória neutralidade, já que a letra da lei, por mais clara que possa parecer, mostra-se insuficiente a normatizar a vida real, com todas as nuances e complexidade suscitadas pela realidade fática.

A segunda alternativa, contudo, é igualmente perniciosa. O magistrado não foi eleito pelo voto popular e encontrará a legitimação de sua atividade no respeito (não à sua ideologia, senão) à legalidade constitucional. Princípios e regras são igualmente necessários, cabendo ao intérprete incorporar nas normas infraconstitucionais os princípios e valores que, postos no texto constitucional, representam as escolhas que caracterizam a identidade cultural da sociedade. Desse modo, a letra fria da regra será flexibilizada, assim como a amplitude de alternativas oferecida pelo princípio encontrará parâmetros confiáveis nos valores do próprio sistema jurídico. Regras e princípios convergem, desse modo, na unidade do sistema jurídico, sempre com o recurso à técnica da ponderação, para calibrar a incidência normativa no caso concreto.

Por tudo isso, tão inaceitável como a reprodução mecânica da lei pelo julgador – la bouche de la loi –, mostra-se a aplicação dos princípios segundo a experiência pessoal do magistrado, que pretende definir, de modo próprio, o que é solidariedade, dignidade, incapacidade, vulnerabilidade, boa-fé e assim por diante. A segurança jurídica estará na conjugação da técnica regulamentar, que se destina a tantas situações específicas, como contenção ao magistrado, com a técnica das cláusulas gerais, as quais adquirem densidade normativa pela fundamentação da sentença, que justificará a decisão a partir da incorporação conscienciosa, em cada regra, dos princípios constitucionais.

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