Causou consternação em todo o país a recente divulgação da disputa pela herança de Gugu Liberato. Logo tomaram partido nas redes sociais, ora a favor de Rose, a mãe dos filhos de Gugu, a quem se teria negado amparo, ora em defesa dos filhos, beneficiados pelo testamento e segundo os quais nunca houve relação conjugal entre os pais.

Por um lado, circulou-se vídeo no qual Rose afirma ter composto, com o pai e os três filhos, entidade familiar vera e própria. Por outro, divulgou-se contrato, aparentemente assinado pelas partes, designado como “compromisso conjunto para criação de filhos”, pelo qual os genitores desconhecem qualquer espécie de vínculo afetivo, limitando-se a estabelecer seus deveres e direitos em relação à guarda e assistência dos filhos. A confirmar-se tal ajuste, as fotos do casal, abundantemente postadas, teriam sido destinadas simplesmente à simulação de convivência familiar que, em verdade, nunca teria acontecido. A questão é que o ajuste tanto poderia significar a inexistência de vida em comum – já que se circunscreve à criação dos filhos –, quanto a sua perfeita estabilidade, tendo as partes se preocupado, naquele documento, exclusivamente com o futuro dos filhos, não com suas relações patrimoniais. Independentemente do desfecho do processo, litígios desse jaez, especialmente entre mãe e filhos, não admitem vencedores e todos dele sairão mais solitários, menos humanos.

Aludido drama familiar, embora singularizado pela notoriedade do apresentador precocemente falecido, reproduz situação bastante frequente nos tribunais, a revelar verdadeira crise da legislação sucessória, em flagrante descompasso com as famílias atuais. Os direitos sucessórios foram estabelecidos no contexto da família monogâmica, duradoura, das quais se esperava a formação de prole comum. A mulher era afastada, no comum dos casos, do mercado de trabalho, exigindo proteção econômica ao final dos relacionamentos. De outra parte, os vínculos extraconjugais eram inadmissíveis pela ordem jurídica, somente sendo reconhecidas as uniões estáveis após longa e pública convivência entre pessoas desimpedidas para casar.

A despeito do modelo de família idealizado pelo legislador, a sociedade brasileira alterou-se profundamente. Os relacionamentos são hoje dissolúveis, mutantes e por vezes transitórios, sobrepondo-se em arranjos familiares os mais diversos. Admitem-se as famílias entre pessoas do mesmo sexo, as famílias simultâneas; proliferam-se as famílias monoparentais e há quem admita inclusive as chamadas famílias parentais, cujo relacionamento entre pais, longe do afeto próprio da convivência familiar, se limita ao compromisso bilateral de educação e sustento de filhos. Discute-se, ainda, se a noção de família conjugal incluiria os relacionamentos entre mais de duas pessoas, chamados de poliamor. Além disso, as mulheres ganham espaço no mercado de trabalho, conscientes do seu papel fora do lar e de que a igualdade econômica fortalecerá a igualdade de direitos. Advogadas, juízas, promotoras, médicas, empresárias, a igualdade se impõe na família democrática.

Diante da ausência de hierarquia entre todas as espécies de famílias merecedoras de tutela, o Supremo Tribunal Federal, em nome do princípio da igualdade, que assegura a cada um o direito de constituir o seu modelo de família (e a comunhão plena de vida preconizada pelo art. 1.511, do Código Civil) segundo suas próprias convicções e desejos, proclamou a igualdade dos direitos sucessórios entre cônjuges e companheiros, declarando a inconstitucionalidade do art. 1.790 do Código Civil. Estabelecida, desse modo, a igualdade e a multiplicidade de modelos familiares, prolifera-se a insegurança jurídica em relação a todo e qualquer relacionamento afetivo, sem se saber ao certo quais os direitos sucessórios prevalecerão após a morte do cônjuge ou companheiro.

Em contexto assim definido, é de se repensar a presença do cônjuge dentre os herdeiros necessários (art. 1845, Código Civil) em concorrência com os descendentes, assim como o conceito de solidariedade familiar refletido na disciplina do Código Civil. A despeito da criatividade dos chamados contratos de namoro e de outros pactos, a obrigatoriedade da sucessão hereditária, em concurso com filhos, por vezes oriundos de relações diversas, é realidade de constrangedora incompatibilidade com a sociedade atual. Eis a questão subjacente ao conflito dos Liberato.

A inclusão do cônjuge e companheiro na sucessão legítima mostra-se oportuna para a proteção de partes vulneráveis e da grande maioria dos casais, especialmente das classes de média e baixa rendas, que em geral não celebram pacto antenupcial e, pouco frequentemente, redigem testamento. Tal proteção deve se tornar, por reforma legislativa, subsidiária, não obrigatória. Afinal, não parece condizente com a sociedade contemporânea, diante de tantos modelos familiares, que se impeça aos interessados, por testamento ou mediante pacto antenupcial, como já ocorre na experiência estrangeira, afastarem a sucessão hereditária entre os cônjuges ou companheiros. Desse modo, seria possível conciliar a necessidade de proteção dos cônjuges e companheiros, incidente de modo subsidiário, no silêncio dos interessados, com a autonomia privada e a liberdade testamentária.

Com tal propósito, mostra-se urgente reforma legislativa que resgate a segurança jurídica e fortaleça a liberdade para a constituição das famílias de modo mais adequado a cada modelo patrimonial desejado. A solidariedade recíproca do casal não implica necessariamente sucessão hereditária entre pessoas não vulneráveis, que pretendam separar as relações afetivas e de parentalidade dos direitos sucessórios. Tal alteração legislativa, que permita a liberdade para se estipular, na relação dos casais, o regime de bens e sucessório, tornaria clara para os interessados – incluindo Rose e Augusto Liberato – os regimes patrimonial e sucessório aplicáveis. Afastam-se, dessa maneira, reversões de expectativas e conflitos familiares desnecessários, permitindo-se a afirmação dos princípios da igualdade e solidariedade de modo mais consentâneo com a legalidade constitucional.

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