De acordo com o artigo 1º, incisos III e IV da Constituição Federal, “a República Federativa do Brasil (...) constitui-se em Estado democrático de Direito e tem como Fundamentos:

III – A dignidade da pessoa humana;

IV – os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa

Há quase dois anos o então ministro da Fazenda afirmava que a nova lei trabalhista (Lei 13.467, de 2017) iria tornar viável a geração de mais de seis milhões de novos empregos no Brasil (Portal G.1 de 30/10/17 - matéria assinada por Alexandre Martello).  Naquele ano o país já contava 12,3 milhões de desempregados e 11,1 milhões de pessoas trabalhando sem carteira assinada.

Passados dois anos, a previsão do então ministro não se realizou. O número de desempregados atingiu o patamar de 13,1 milhões de pessoas, mantendo-se os mesmos números de 11,1 milhões dos chamados “empregados” sem carteira de trabalho assinada. Some-se a esses números o total de 23,3 milhões de pessoas trabalhando por conta própria.

Assim, o total de trabalhadores informais, acrescido daqueles que estão trabalhando por conta própria, supera hoje o número de empregados com carteira de trabalho assinada no setor privado.

Esses números estão a indicar, também, a fraude massiva ao disposto nos artigos 2º, 3º e 23 da Consolidação das Leis do Trabalho e, como consequência, o potencial aumento da conflitualidade trabalhista. Entretanto, e curiosamente, a Justiça do Trabalho experimenta uma queda de aproximadamente 34% do número de ajuizamentos das reclamações após o advento da Lei 13.467/2017.

Eis um fato a ser estudado: o momentâneo divórcio do trabalhador, que se afasta da Justiça do Trabalho. O subemprego, o trabalho sem carteira assinada, a precarização da força do trabalho, o desemprego em nível elevado, e que já nos parece perene, resultam no aumento das tensões sociais, que normalmente são canalizadas para a Justiça do Trabalho. Todavia esses fatos e números não vêm se convertendo em reclamações trabalhistas

Temos que ainda é a Justiça do Trabalho a instituição mais capacitada e confiável para, em larga escala, de forma civilizada e segura para as partes, conciliar, julgar e dirimir as questões trabalhistas ou, nas palavras de Oliveira Viana, “os conflitos sociais voltarão a ser um caso de polícia, decididos a golpes de chanfalho e a patas de cavalo nas correrias da praça pública” (extraído da obra Liberalismo e Justiça do Trabalho - Seis décadas de confronto, do desembargador José Nascimento Araujo Neto). Aliás, não raro já podemos testemunhar que chanfalho foi substituído pelas balas de borracha em recentes manifestações populares. Artefatos utilizados para abater o ímpeto dos manifestantes mais exaltados e comumente denominados de vândalos. Já as patas dos cavalos, essas em nada mudaram.

Há no mínimo uma década a Justiça do Trabalho vem sendo apontada como um dos entraves ao desenvolvimento econômico, ao investimento do capital estrangeiro no país e à criação de novos postos de trabalho. Sem querer fazer - e, definitivamente, não o fazendo - qualquer espécie de proselitismo político, é forçoso admitir que toda essa prosa oficial não nos parece absolutamente verdadeira, visto inclusive que há pouco vivenciamos a experiência do (quase) pleno emprego e de uma inédita e modesta melhoria na distribuição de renda, ainda que na vigência da legislação trabalhista, conceituada por alguns críticos como anacrônica, vigente até o advento da Lei 13.467/2017.  

A Justiça do Trabalho não legisla. Não cria direitos, apenas aplica a legislação em vigor nos seus julgamentos. As súmulas editadas pelos tribunais igualmente não restringem direitos nem ampliam obrigações previstas em lei. Súmula da jurisprudência, em síntese e como todo advogado conhece, é a interpretação pacificada ou majoritária sobre determinado posicionamento dos tribunais.

Todavia, e isso também é inegável, é a Justiça do Trabalho que faz valer e assegura ao trabalhador de forma pacífica e civilizada os direitos previstos no ordenamento jurídico. E a forma pacífica para resolver os conflitos entre o capital e o trabalho, penso eu, ainda é o método que mais atende a empresários, trabalhadores e à sociedade em geral.

O ano de 2018 fechou com mais de 55 milhões de brasileiros abaixo da linha da pobreza, segundo padrão definido pelo Banco Mundial, ou seja, com renda domiciliar inferior a R$ 406 por mês. Mais de sete milhões de jovens, entre 18 e 24 anos, estão subutilizados (desistiram de procurar emprego ou têm disponibilidade para trabalhar mais horas por semana), sendo certo que, desses números, mais de quatro milhões estão desempregados (Portal G1, 21/06/19). Nesse grupo maior é possível identificar ainda a trágica parcela de 15 milhões de pessoas subsistindo em condições de extrema pobreza. Reflexo fidedigno do desemprego, do subemprego, do baixo valor médio do salário praticado no país, do trabalho precarizado sem atender às condições mínimas de segurança e saúde do trabalho, matriz da violência praticada nas formas mais diversas e imaginadas, urbana e rural, da qual, em maior ou menor grau, por vezes até mesmo imperceptível, todos somos vítimas.

Esses números são a antítese dos princípios insculpidos nos artigos 1º, III e IV da Constituição Federal, da dignidade da pessoa humana e do valor social do trabalho, fundamentos da República Federativa do Brasil e do Estado democrático de Direito, em que se constitui.  É direito intrínseco à pessoa humana. 

O Estado tem o dever de proteger e garantir a efetividade do princípio da dignidade da pessoa humana que, em termos de direitos sociais, se traduz, em síntese, no próprio direito ao trabalho digno.  Trabalho digno é aquele remunerado de forma justa, capaz de garantir ao trabalhador e à sua família uma subsistência igualmente digna com saúde, educação, segurança, lazer, habitação, transporte etc.

Trabalho digno é aquele prestado em condições de salubridade, respeitadas as regras de segurança e medicina do trabalho.

O acesso livre e direto à Justiça do Trabalho, garantida a plena gratuidade para aqueles que não podem demandar sem prejuízo do próprio sustento, o de sua família e dependentes, também se insere na tutela do princípio da dignidade humana, uma vez que a garantia de acesso à Justiça é afinal a garantia do acesso e efetividade dos direitos assegurados pela ordem jurídica.

A República, que se constitui no Estado democrático de Direito, não pode permanecer insensível a esse drama que aflige milhões de brasileiros porque, a seguir esse caminho, pode deixar de ser, no futuro breve:

. Democrática e

. de Direito.

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